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Mensagens

A mostrar mensagens de outubro, 2021

Mudanças

  Vais ter de mudar de casa, lamento, já não cabes aqui. Empacotei as tuas coisas. Quero que saias já. Fiz a partilha sozinha porque a casa é minha. Levas as noites quentes, o meu sorriso e a televisão. Ah, e levas também os orgasmos. Metade eram falsos. Com as madrugadas fico eu. São as horas em que escrevo melhor. Também guardo o cobertor e o gato. Não precisas de confortos. A culpa, deitei fora. Não tapava nem frinchas. Pelo meio das arrumações, encontrei um bilhete, pingado de café, “compra-me tampões. SEM APLICADOR!”, com um coração no canto, a piscar o olho. Rio-me. Sobra de nós uma hemorragia inútil. Abro uma garrafa de tinto e sento-me, no chão da cozinha, a brindar aos infortúnios. Tens à porta a mala e dois caixotes. Levas o bengaleiro, detesto os casacos pendurados na entrada. E os amigos, com quais ficas? Que sejam eles a escolher. Por mim, dois ou três bastam. Não toques à campainha. Vê lá se, ao menos desta vez, trazes a chave contigo. Deitei a tua escova de

Colo e lãs

  Vai , rua fora, com o gorro vermelho enterrado até às orelhas. A manhã fria entra-lhe pelos ossos. Ouve música, alto, passeando a tristeza pela métrica da letra. Ao passar por uma montra para, observando a silhueta. Leva a mão ao gorro e cai-lhe, no ombro, açúcar do éclair esborrachado que traz no bolso. Come bolos com creme, quando está triste. Na outra mão, dependurado, um ramo de antúrios. (Trago flores e um doce, avó). Sentavam-se na cozinha e ela, embalada pelo bater das agulhas, molhava a torrada no café com leite. As pupilas, tremendo, acompanhavam o correr da malha, a lã grossa de ponto incerto, as mãos nodosas.   “Vou fazer-te um gorro, Ana. Que cor queres?”, “Quero bege, avó”. Na semana seguinte, o novelo de lã vermelha na cesta, ao lado da poltrona. Xaile pelas costas, os cotovelos entalados entre os braços de veludo puído. “Gostas, Ana?”, “Gosto, avó”. E o leite morno a apagar as lágrimas na garganta. Numa tarde húmida, uma malha a fugir, um remate a mais. “Fazes

Redenção

Estão sentados, frente a frente, numa mesa junto à janela. Lá fora, cintilam gotas de chuva e luzes de Natal que, repara ela, chegam cedo demais. Leva o copo aos lábios, as pestanas a encerrar emoções. Esconde o desconcerto. Ele prossegue, ignorante. “Precisamos de uma barriga de aluguer”, diz, sem perceber como a voz cava embate nela. “Não há ninguém melhor que tu”, continua, e as palavras chocam na transparência dela, na lâmina que a envolve sem ele ver. Foram anos a prometer-lhe paixões impossíveis e ele, perdido noutros encantos, amando noutros lugares. Voltando, de tempo e tempo, à bolha de vidro dela. E ela acolhendo-o nos regressos, deixando-o escorregar-lhe na pele fria. Quando lhe apresentou o Miguel, ela soube. “Desta vez é a sério”, disse-lhe ele, sem a ver tornar-se opaca. E, diante da cegueira dele, sem redenção para os pecados que não conheceu, ela enterrou o amor num abismo fundo. Ele, olhos fraternos, para lá da redoma das paixões, a amá-la sem imaginar como isso a fi