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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2020

A cor das cuecas

  Com o ano a chegar ao fim (e que ano), há uma tendência para as pessoas fazerem o balanço dos 12 meses que passaram e expressar desejos para os 12 que aí vêm. Não vou fazer uma coisa nem outra. Primeiro porque nem sei para onde foram os 12 meses de 2020 e foi um ano tão cheio de situações inauditas que, se por um lado parece impossível que os meses se tenham sucedido, por outro é tal a amálgama de situações e sentimentos, frustrações, medos, alegrias, palpitações e outras coisas, a fugir ao meu controlo, que não entendo como couberam nestes 365 dias. Depois, também não vou evocar desejos nem traçar planos para o próximo ano porque, se há coisa que este nos ensinou, é que Deus diverte-se mesmo com o que nós planeamos. Também não vou comer as passas que detesto e que, obviamente, não têm qualquer utilidade. Não haverá fogo-de-artificio, nem cuecas a estrear com significado na cor. Aliás, acho até que, tendo em conta os agouros que trouxeram as cores da última passagem de ano, dever

amores por acaso

Estava de pé, junto à balaustrada, a ver os carros passarem e a fazer cálculos de cabeça sobre quanto tempo demoraria até ao embate, se saltasse. Diz-se que nos segundos que antecedem a morte uma pessoa revê de uma assentada toda vida. E isso era coisa que não queria. O que queria era, precisamente, o inverso. Pode pensar-se que o inverso de recordar é esquecer. No amor, não é. No amor, o inverso de recordar, é recordar de outra maneira. Como quem não amou.   E então lá estava, com o corpo a pender entre o desalento e o vazio, sem decidir se ia ou se ficava. Não temia a morte. Também não temia a vida. Já a dor, causava-lhe enorme angústia. “Não se morre de amor. – Meditava - Romeu bebeu veneno e Julieta, num impulso corajoso, cravou no peito o punhal do seu amado. O amor não mata ninguém. São os acasos que causam as maiores tragédias.” Um raio de sol irrompeu por entre as nuvens, desenhando-lhe uma pequena figura na mão, semelhante a uma gota. Um melro cantou. A fitar o d

Natureza Morta

O André levantou-se do sofá e dirigiu-se à janela. Tinham-lhe dito para esperar e ele esperava. A sua vida, ainda curta, era pautada por obediências. Silencioso, devorava o pouco mundo que conhecia, com olhos grandes e boca calada. Quando passeava pelo pequeno bosque nas traseiras da casa, misturava os passos com as folhas do chão, diluído na paisagem, quase sem existir. Demasiado pequeno para ter memórias da chegada à casa, imaginava ter sido depositado na soleira da porta, dentro de uma selha a fazer vezes de alcofa. Na sua fantasia, a mãe aconchegava-lhe o corpo com um cobertor puído e prometia, numa voz embaciada pelas lágrimas, que voltaria para o buscar. E era esse regresso que ele aguardava para começar a existir. Mas os anos passavam e o André esperava, habitando os seus silêncios e obedecendo à vida que se desenrolava sem a sua interferência. De tanto se misturar com as folhas, convenceu-se que era uma natureza morta. E depois, um dia, apareceu a Fátima. A Fátima que,

Clara

  Já não o via há mais de uma década quando empurrou o portão, mas era com o mesmo passo lesto que Clara cruzava a entrada. Com a cabeça deitada na erva e a cauda estendida, não se levantou ao sabê-la chegar. Era como se ali a tivesse esperado todas as tardes desses anos e a confirmação do regresso dispensasse alaridos. Um movimento subtil da orelha traiu a dissimulação. Clara aproximou-se de mansinho, ajoelhou-se e pousou-lhe a mão no lombo. O enorme pastor alemão ergueu-se de um salto e derrubou-a, lambeu-lhe o queixo, o nariz. e soltou gargalhadas canídeas semelhantes a latidos. Ela, abraçando-o, afundou-lhe a cara e as lágrimas no pelo farto do pescoço. Pararam, ofegantes. De pernas cruzadas, afagando as orelhas do cão, ela dilatava as narinas, sorvendo recordações. Guiava as saudades pelos cheiros do mosto, das maçãs maduras, da panela de marmelada e do cachimbo do avô. A infância era feita de cheiros. A segurança cheirava a cachimbo e pelo de cão. A felicidade cheirava a feno

Erros

Ouve-se o crepitar da lareira e a chuva lá fora. Ela está sentada de perna cruzadas, com a manta de xadrez no colo, a cobrir-lhe os medos. Ele está na outra ponta do sofá, rígido. - Quando é que eu errei? – pergunta ele. - Não erraste. Só não estavas certo. Ele fica em silêncio. Remói a resposta. Ouvem-se-lhe os pensamentos pelo meio das gotas de chuva. Ela observa os desenhos da água a escorrer nos vidros e pensa que se parecem com as palavras que ele não diz, a escorrerem-lhe pela pele. Os olhos dele estão presos numa ideia distante, que ela pressente, mas não vê. Finalmente estremece, como a chegar de um sonho. Afaga o queixo com o polegar e o indicador, entreabre os lábios, ensaia um som. Procura o timbre certo. - Pensei amar-te – murmura - Mas depois pensei melhor. Tem chuva na voz. Ela encolhe-se, açoitada. Quer retaliar, ser cruel. Quer que ele saiba como dói quando lhe chove por dentro. Levanta-se. Deixa cair ao chão a manta que enrola os medos. De costas, estende as mãos esgui