Avançar para o conteúdo principal

Natureza Morta

O André levantou-se do sofá e dirigiu-se à janela. Tinham-lhe dito para esperar e ele esperava. A sua vida, ainda curta, era pautada por obediências.

Silencioso, devorava o pouco mundo que conhecia, com olhos grandes e boca calada. Quando passeava pelo pequeno bosque nas traseiras da casa, misturava os passos com as folhas do chão, diluído na paisagem, quase sem existir.

Demasiado pequeno para ter memórias da chegada à casa, imaginava ter sido depositado na soleira da porta, dentro de uma selha a fazer vezes de alcofa. Na sua fantasia, a mãe aconchegava-lhe o corpo com um cobertor puído e prometia, numa voz embaciada pelas lágrimas, que voltaria para o buscar. E era esse regresso que ele aguardava para começar a existir.

Mas os anos passavam e o André esperava, habitando os seus silêncios e obedecendo à vida que se desenrolava sem a sua interferência. De tanto se misturar com as folhas, convenceu-se que era uma natureza morta.

E depois, um dia, apareceu a Fátima. A Fátima que, apesar do nome áspero e sorriso triste, ele achava suave, como algodão. Ou seda. Ele nunca tinha tocado em seda, mas acreditava que era como a pele da Fátima. Da Fátima que cheirava a aguarrás e tinha as unhas manchadas de tinta.

Agora, a Fátima estava sentada no gabinete da diretora, por trás da pesada porta de mogno e o menino, obediente, aguardava.

Dias antes, tinham conversado, os dois. Ou antes, a Fátima tinha falado com o seu silêncio. Tinha-lhe explicado que, se ele quisesse, ela gostava de lhe pintar outra vida, em que ele existisse, em que se destacasse do fundo, das árvores, das folhas. Em que fosse a figura no centro do quadro.

Na verdade, não foi assim que ela disse. Mas foi assim que o André soube que a Fátima vinha para o arrancar à paisagem.

 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Desculpa-me

  Pedes desculpa, mais uma vez. A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar. Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a miúda, rabugenta, pelo pulso. Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou. Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o ranho à blusa. - Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena, duvida. Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados. Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca da camisola. O recado da educadora flutua através de mim. Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café. Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na cintura. Cheiras a dia lavado. - Vai ser diferente, agora. Quero c...

Manifesto

  Esta noite tive um sonho demasiado lucido. Se acreditasse em fenómenos paranormais, diria que viajei num universo paralelo. A sala era luminosa. As pessoas recostavam-se, dispostas em hemiciclo. O orador falava, embalando a assistência. - O coração é um músculo cuja função é bombear sangue e provocar mortes súbitas. Para uma morte tardia, não devemos subverter este princípio. As palavras flutuavam, como uma melodia, conduzidas pela brisa morna. - Os indivíduos, ao atribuir ao musculo estímulos para os quais não foi concebido, como amar, sobrecarregam-no e acabam por danificá-lo. O amor tem propriedades corrosivas que provocam lesões irreparáveis nos tecidos do coração e que, transportadas pelo sangue, se espalham às outras partes do corpo. As pessoas ouviam e anuíam, perante aquela explicação cabal para as dores que sentiam. As pestanas carregavam-se de lágrimas. As chagas que os afligiam mais não eram, afinal, que o resultado do uso inadequado do coração. - Como qu...

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordin...