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It’s beginning to look a lot like Christmas.

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Criança-concha

  “A produção da pérola pela ostra nada mais é do que um mecanismo de defesa do animal, quando ocorre a penetração de corpos estranhos entre a concha e o manto.”   O menino enrola o corpo sobre o ursinho e eu, numa voz que arranha a garganta, digo-lhe que lá, para onde vai, o céu tem cor de rebuçado e as nuvens são tão fofas que parecem pular. Afago-lhe o cabelo escuro e ele encolhe-se. Embalado pela cadência das ondas, murmura para o peluche, numa língua que só os dois conhecem. Tem no rosto o sal de muitas lágrimas. O urso responde-lhe, pois outro préstimo não tem. É uma criança e devia ser feliz. Não foi para a felicidade que deus inventou as crianças? Que ironias são estas? Que crianças, de que deuses? O negrume do céu funde-se no oceano trágico. O brilho das estrelas é uma paródia neste lugar inóspito onde os mergulhos se revestem de poética macabra. Nas latitudes onde a corrente é opaca e gélida, homens morrem de sede, rodeados de água. Se vencida a noite, vem o sol, nu

Desculpa-me

  Pedes desculpa, mais uma vez. A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar. Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a miúda, rabugenta, pelo pulso. Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou. Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o ranho à blusa. - Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena, duvida. Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados. Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca da camisola. O recado da educadora flutua através de mim. Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café. Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na cintura. Cheiras a dia lavado. - Vai ser diferente, agora. Quero crer-

Manifesto

  Esta noite tive um sonho demasiado lucido. Se acreditasse em fenómenos paranormais, diria que viajei num universo paralelo. A sala era luminosa. As pessoas recostavam-se, dispostas em hemiciclo. O orador falava, embalando a assistência. - O coração é um músculo cuja função é bombear sangue e provocar mortes súbitas. Para uma morte tardia, não devemos subverter este princípio. As palavras flutuavam, como uma melodia, conduzidas pela brisa morna. - Os indivíduos, ao atribuir ao musculo estímulos para os quais não foi concebido, como amar, sobrecarregam-no e acabam por danificá-lo. O amor tem propriedades corrosivas que provocam lesões irreparáveis nos tecidos do coração e que, transportadas pelo sangue, se espalham às outras partes do corpo. As pessoas ouviam e anuíam, perante aquela explicação cabal para as dores que sentiam. As pestanas carregavam-se de lágrimas. As chagas que os afligiam mais não eram, afinal, que o resultado do uso inadequado do coração. - Como qualqu

Mudanças

  Vais ter de mudar de casa, lamento, já não cabes aqui. Empacotei as tuas coisas. Quero que saias já. Fiz a partilha sozinha porque a casa é minha. Levas as noites quentes, o meu sorriso e a televisão. Ah, e levas também os orgasmos. Metade eram falsos. Com as madrugadas fico eu. São as horas em que escrevo melhor. Também guardo o cobertor e o gato. Não precisas de confortos. A culpa, deitei fora. Não tapava nem frinchas. Pelo meio das arrumações, encontrei um bilhete, pingado de café, “compra-me tampões. SEM APLICADOR!”, com um coração no canto, a piscar o olho. Rio-me. Sobra de nós uma hemorragia inútil. Abro uma garrafa de tinto e sento-me, no chão da cozinha, a brindar aos infortúnios. Tens à porta a mala e dois caixotes. Levas o bengaleiro, detesto os casacos pendurados na entrada. E os amigos, com quais ficas? Que sejam eles a escolher. Por mim, dois ou três bastam. Não toques à campainha. Vê lá se, ao menos desta vez, trazes a chave contigo. Deitei a tua escova de

Colo e lãs

  Vai , rua fora, com o gorro vermelho enterrado até às orelhas. A manhã fria entra-lhe pelos ossos. Ouve música, alto, passeando a tristeza pela métrica da letra. Ao passar por uma montra para, observando a silhueta. Leva a mão ao gorro e cai-lhe, no ombro, açúcar do éclair esborrachado que traz no bolso. Come bolos com creme, quando está triste. Na outra mão, dependurado, um ramo de antúrios. (Trago flores e um doce, avó). Sentavam-se na cozinha e ela, embalada pelo bater das agulhas, molhava a torrada no café com leite. As pupilas, tremendo, acompanhavam o correr da malha, a lã grossa de ponto incerto, as mãos nodosas.   “Vou fazer-te um gorro, Ana. Que cor queres?”, “Quero bege, avó”. Na semana seguinte, o novelo de lã vermelha na cesta, ao lado da poltrona. Xaile pelas costas, os cotovelos entalados entre os braços de veludo puído. “Gostas, Ana?”, “Gosto, avó”. E o leite morno a apagar as lágrimas na garganta. Numa tarde húmida, uma malha a fugir, um remate a mais. “Fazes

Redenção

Estão sentados, frente a frente, numa mesa junto à janela. Lá fora, cintilam gotas de chuva e luzes de Natal que, repara ela, chegam cedo demais. Leva o copo aos lábios, as pestanas a encerrar emoções. Esconde o desconcerto. Ele prossegue, ignorante. “Precisamos de uma barriga de aluguer”, diz, sem perceber como a voz cava embate nela. “Não há ninguém melhor que tu”, continua, e as palavras chocam na transparência dela, na lâmina que a envolve sem ele ver. Foram anos a prometer-lhe paixões impossíveis e ele, perdido noutros encantos, amando noutros lugares. Voltando, de tempo e tempo, à bolha de vidro dela. E ela acolhendo-o nos regressos, deixando-o escorregar-lhe na pele fria. Quando lhe apresentou o Miguel, ela soube. “Desta vez é a sério”, disse-lhe ele, sem a ver tornar-se opaca. E, diante da cegueira dele, sem redenção para os pecados que não conheceu, ela enterrou o amor num abismo fundo. Ele, olhos fraternos, para lá da redoma das paixões, a amá-la sem imaginar como isso a fi

Hold me on pause

  Tudo preparado. As almofadas aconchegadas, a manta dobrada ao lado, a garrafa de vinho aberta. E um copo, só. Chocolates com recheio de caramelo, o sabor que inventei para a tua língua. A imagem está em pause : minuto 00:00. - Estás pronta? - Sim. Play . Saltamos o genérico. Generalidades não nos seduzem. Encho o copo. Os minutos passam pelo ecrã. Aumento o volume, a expectativa cresce, abafo um grito. Não ouves, mas sei que adivinhas. Sei que sorris. Engulo em seco. Levo o copo aos lábios. O anseio aquece-me o ventre. Aperto o comando. - Para. Fiz rewind sem querer, já não sei onde estou. - Eu espero. Disfarças mal a impaciência, eu pressinto. Tens pressa? Omito a pergunta. Fui eu que escolhi o filme. Disse-te porquê? Julgo que não. Temos por costume evitar lugares-comuns. - Cheguei. Prosseguimos em slow motion , o caramelo derrete-me nos dentes e fecho os olhos por instantes. Terei de mentir depois. Fingir que não perdi nada. E preciso de mais vinho. Ponho
Tu que és valente, que não choras, tu sabes que tens a mania, não sabes? Eu conheço o arquivo de textos, excertos de livros, fotografias, cenas de filmes, com que escarafunchas cicatrizes antigas até sangrar um bocadinho. Eu sei desses dias em que a respiração te encrava no diafragma. Sei da playlist que te serve de banda sonora, empanturrando-te de agonias alheias, até não te restarem tons de rosa e não haver tatuagem que te salve. Mesmo se quisesses. E não queres. Então, lambes a lagrima que te escorre até ao queixo, enquanto ouves em loop a mais triste das músicas tristes. Recusas oportunidades que te resgatem à tristeza. Queres chorar por inteiro, a começar na sola e a acabar no cabelo. Se rires, culpar-te-ás porque esqueceste. Montas um carrossel entre os ouvidos, movido a melancolia e palavras mal ditas. Ficas zonza. Castigas-te com remorsos antigos e com as falhas que inventaste. Suspendes o baloiço, com os pés e os sonhos enterrados no chão. Empenhas-te na visita sol

amig@s

@s amig@s especializam-se e apuram-se. olham-nos, com aquele ar de mete-nojo, e a gente já sabe que dali não sai sem deitar tudo cá para fora. irritam-nos, andamos às turras, trocamos insultos. com os outros, contemo-nos. se gostar de ti, experimenta-me, mando-te f*%# sem hesitações. e grito-te. se me calar, preocupa-te, é porque na minha mente já estás em processo de decomposição. não me abraces, que eu arranho. nem me passes a mão pelo pelo. não me faças falar, que eu choro. eu sou forte, eu sou forte, não se passa nada, foi só uma MUAAAHHH…. oh, deixa-te disso, anda mas é beber um copo. deixa lá o Covid, dá-me um abraço. dá-me dois. esquece as calorias e dá-me outro copo. dá-me um beijo na testa e eu caio de joelhos tenho que te dizer isto. são uma data de merdas que não interessam a ninguém e não te vão fazer mais feliz, nem te são uteis, mas tenho que te dizer. sabes como é, sinceridade acima de tudo. sei? não, não sei. a mim, interessa-me a lealdade. e essa, amig@, é na hora. a