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A mostrar mensagens de março, 2021

Crónica de uma violência anunciada - 5

  É muito cedo. Os candeeiros da rua ainda estão acesos e o edifício está quase vazio. Apenas um agente, sentado à secretária, ouve a mulher à sua frente, com uma expressão condescendente. Faz rabiscos no bloco quadriculado, enquanto a pressão nas têmporas lhe recorda os excessos da noite anterior. A mulher tem uma equimose abaixo do olho esquerdo e um corte no lábio. A voz é fatigada, vazia de emoções. Apenas o brilho nos olhos de gato, que mudam de tom enquanto ela fala, mostram resquícios de uma força antiga. Na noite anterior, quando no telejornal vira a mulher que apareceu morta na praia, Helena tomou uma decisão. De manhã pensou ligar a Laura e pedir-lhe que a acompanhasse à esquadra, como fizera há alguns anos, mas foi impedida pela vergonha. Retirara a queixa, nessa altura, e deixara de responder às chamadas preocupadas de Laura. Há de ligar-lhe mais tarde, dizer-lhe que desta vez será mais forte. O agente (Victor Alves, é como se chama) parece distraído e Helena não tem a

Crónica de uma violência anunciada - 4

A água arrefeceu. Laura acorda com frio e demora a perceber onde está. Tem a pele dos dedos engelhada e o pescoço dorido, quando se levanta para abrir o chuveiro. De pé, deixa a água quente escorrer-lhe pela cabeça, fechando os olhos. Tem a respiração irregular, revive, perturbada, as sensações do sonho. Acomete-a a impressão de que havia um sinal oculto, no que sonhou. Como um aviso. Num esforço metódico recordar os detalhes: Estava numa sala austera, mal iluminada, revestida a painéis de cerejeira. No centro da sala, exatamente no ponto onde uma luz difusa incidia, encontrava-se uma mulher, de braços cruzados sobre o peito e o olhar cor de desalento. As feições eram tão suaves, que pareciam a desvanecer. Uma voz forte, polida como os painéis das paredes, fez-se ouvir “acha que alguém acredita nessa história?” E a mulher, ouvindo, encolheu-se mais sobre si própria. Havia pessoas na penumbra, das quais apenas se distinguiam contornos, mas Laura conseguia perceber que eram mai

Crónica de uma violência anunciada - 3

  A casa está silenciosa. No telemóvel, pisca a luz de nova mensagem. Sem abrir, Laura vê as primeiras palavras: “ainda estou atrasado…”.  De novo, sente invadi-la uma sensação que se assemelha a um cansaço muito profundo. Decidida a sucumbir-lhe, prepara um banho de imersão. Vê o fio de gel escorrer para o fundo da banheira, e deixa acumular-se uma quantidade maior que o necessário. Abre a torneira deixando a espuma formar-se, enquanto acende velas e põe a tocar o programa radiofónico da noite. Acha reconfortante a voz profunda do locutor. Sente-se menos sozinha. Despe-se devagar, admirando os contornos do corpo à luz tremeluzente das velas. Ocorre-lhe que é um desperdício e zanga-se. Ela é um desperdício, pensa. O seu corpo, que o marido não venera, é um desperdício. Queria outro olhar de admiração para além do seu. Percebe que anseia pela validação masculina e zanga-se ainda mais. Ao entrar na banheira, porém, deleita-se com o contraste entre a água quente e a espuma fria e deix

Sustos

    O que é um susto? O que é que me assusta? Na sequência de uma conversa a propósito de filmes de terror, dei por mim a meditar sobre o assunto. Susto Medo   profundo   e   repentino ;  sobressalto .   Medo   Estado   emocional   resultante   da   consciência   de   perigo   ou   de   ameaça ,   reais ,  hipotéticos   ou   imaginários .  =  FOBIA ,  PAVOR ,  TERROR in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa Portanto, susto, é aquele medo que nos toma de assalto. Corta a respiração, faz soltar um grito involuntário, levar a mão à boca, fechar os olhos. Eu gosto muito de filmes de terror. E de sustos. Não me fazem dormir mal, nem me causam receios quando me levanto a meio da noite e está tudo escuro. Depois daquele choque de adrenalina, compensado com açúcar das pipocas, acendo a luz da sala, e esta tudo bem. O paranormal não me causa desassossego, não sei se por puro ceticismo, se por uma ligeira psicopatia. Os meus desassossegos são outros. Muito mais palpáveis, muit