A água arrefeceu. Laura acorda
com frio e demora a perceber onde está. Tem a pele dos dedos engelhada e o
pescoço dorido, quando se levanta para abrir o chuveiro.
De pé, deixa a água quente
escorrer-lhe pela cabeça, fechando os olhos. Tem a respiração irregular, revive,
perturbada, as sensações do sonho. Acomete-a a impressão de que havia um sinal
oculto, no que sonhou. Como um aviso. Num esforço metódico recordar os detalhes:
Estava numa
sala austera, mal iluminada, revestida a painéis de cerejeira. No centro da
sala, exatamente no ponto onde uma luz difusa incidia, encontrava-se uma
mulher, de braços cruzados sobre o peito e o olhar cor de desalento. As feições
eram tão suaves, que pareciam a desvanecer.
Uma voz
forte, polida como os painéis das paredes, fez-se ouvir “acha que alguém
acredita nessa história?”
E a mulher,
ouvindo, encolheu-se mais sobre si própria.
Havia pessoas
na penumbra, das quais apenas se distinguiam contornos, mas Laura conseguia
perceber que eram maioritariamente homens. Ouvia-se um burburinho, pequenos
risos tossicados e sentia-se um cheiro acre a vinagre ou a sangue. Laura pensou
que devia ser o cheiro que sente a presa, ao saber aproximar-se o predador.
“É verdade”
murmurou a mulher erguendo a cabeça e pondo a descoberto o pescoço macerado.
Isso pareceu irritar o homem que, sem erguer a voz, imprimiu ao discurso uma
inflexão acutilante “tem provas? Ou devemos acreditar na sua palavra?”
A mulher,
acusando a agressão, dobrou os joelhos e mirrou em direção ao chão, como uma
marioneta a quem cortam os fios. Laura sentiu náuseas. Duas mulheres ao seu lado olhavam
aterrorizadas, sem se moverem. À volta ouviam-se comentários escarninhos.
Laura queria
gritar-lhe que acreditava nela, que não estava sozinha. Mas da garganta, atafulhada
de algodão, a voz não saia.
E a mulher,
no chão, ia ficando mais e mais engelhada.
“Tem mais
alguma coisa a dizer?” ecoou, impiedosa, a voz de cerejeira.
Laura,
horrorizada, viu o corpo fundir-se no pavimento.
Ouviu um
soluço, vindo de uma das suas companheiras de assistência. “foi por isto que eu
nunca contei” dizia, apertando a mão da outra.
Laura fecha a água e envolve-se
no toalhão, numa procura instintiva de conforto. Sabe o que a perturbou. Foi a
consciência de que a mulher do sonho se desvanecia sem que qualquer voz se
erguesse para a defender. Desaparecia, reduzida a um farrapo informe de
sofrimento, perante o silêncio cúmplice de quem observava. Sem que um olhar a
resgatasse à sua transparência.
Laura sabe que o seu silêncio também
apagou aquela mulher.
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