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Crónica de uma violência anunciada - 4



A água arrefeceu. Laura acorda com frio e demora a perceber onde está. Tem a pele dos dedos engelhada e o pescoço dorido, quando se levanta para abrir o chuveiro.

De pé, deixa a água quente escorrer-lhe pela cabeça, fechando os olhos. Tem a respiração irregular, revive, perturbada, as sensações do sonho. Acomete-a a impressão de que havia um sinal oculto, no que sonhou. Como um aviso. Num esforço metódico recordar os detalhes:

Estava numa sala austera, mal iluminada, revestida a painéis de cerejeira. No centro da sala, exatamente no ponto onde uma luz difusa incidia, encontrava-se uma mulher, de braços cruzados sobre o peito e o olhar cor de desalento. As feições eram tão suaves, que pareciam a desvanecer.

Uma voz forte, polida como os painéis das paredes, fez-se ouvir “acha que alguém acredita nessa história?”

E a mulher, ouvindo, encolheu-se mais sobre si própria.

Havia pessoas na penumbra, das quais apenas se distinguiam contornos, mas Laura conseguia perceber que eram maioritariamente homens. Ouvia-se um burburinho, pequenos risos tossicados e sentia-se um cheiro acre a vinagre ou a sangue. Laura pensou que devia ser o cheiro que sente a presa, ao saber aproximar-se o predador.

“É verdade” murmurou a mulher erguendo a cabeça e pondo a descoberto o pescoço macerado. Isso pareceu irritar o homem que, sem erguer a voz, imprimiu ao discurso uma inflexão acutilante “tem provas? Ou devemos acreditar na sua palavra?”

A mulher, acusando a agressão, dobrou os joelhos e mirrou em direção ao chão, como uma marioneta a quem cortam os fios. Laura sentiu náuseas.  Duas mulheres ao seu lado olhavam aterrorizadas, sem se moverem. À volta ouviam-se comentários escarninhos.

Laura queria gritar-lhe que acreditava nela, que não estava sozinha. Mas da garganta, atafulhada de algodão, a voz não saia.

E a mulher, no chão, ia ficando mais e mais engelhada.

“Tem mais alguma coisa a dizer?” ecoou, impiedosa, a voz de cerejeira.

Laura, horrorizada, viu o corpo fundir-se no pavimento.

Ouviu um soluço, vindo de uma das suas companheiras de assistência. “foi por isto que eu nunca contei” dizia, apertando a mão da outra.

Laura fecha a água e envolve-se no toalhão, numa procura instintiva de conforto. Sabe o que a perturbou. Foi a consciência de que a mulher do sonho se desvanecia sem que qualquer voz se erguesse para a defender. Desaparecia, reduzida a um farrapo informe de sofrimento, perante o silêncio cúmplice de quem observava. Sem que um olhar a resgatasse à sua transparência.

Laura sabe que o seu silêncio também apagou aquela mulher.

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