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Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2020

Porque te gastas

  Estão sentadas nos degraus das traseiras, com o olhar fixo no pneu que pende do ramo do enorme carvalho. Sob aquela copa, na modorra de uma tarde de verão, quando até os mosquitos voavam sonolentos, Rita, Ana e Marta selaram uma promessa. Fora no dia seguinte à morte da menina Laurinha costureira. A menina Laurinha costureira não tinha a idade das pessoas que morriam, teria ainda muitos anos por gastar. Então, com a convicção dos seus oito anos, prometeram que iriam morrer as três muito velhinhas, já com a vida toda gasta. Não sabiam, nessa altura, como são efémeras as palavras que se dizem com os joelhos esfolados e os vestidos a encurtar no fim da estação. O pneu ressequido perdeu protagonismo nas brincadeiras e os livros e diários conquistaram o lugar na sombra. Fumaram o primeiro cigarro, roubado por Rita, a temerária, à gaveta da cozinha da avó. “Os cigarros fazem mal” avisou Ana, a sensata, mas entre tosse e gargalhadas, também experimentou. Com as costas apoiadas no tr

Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres

Ora bem, então cá estamos nós a pensar que o confinamento é uma coisa terrível. E é. Mas de entre todo o espectro de cinzas, do branco ao negro, terrível pode ter graus muito distintos.  Imaginemos o que é o confinamento para uma mulher que sofre de violência doméstica. Até ao dia de hoje, em números oficiais, morreram 30 mulheres vítimas deste flagelo. 10 morreram desde agosto. A crónica que aqui deixo é fictícia. Porém, de acordo com o que ouvi esta manhã, tendo em conta os números, todos nós, estatisticamente e apesar de não sabermos, temos contacto com alguma mulher nesta situação. O drama (para além do drama maior) é que muitas vezes é um sofrimento guardado dentro das paredes das suas casas. Então, este é p elas mulheres que morreram, pelas que continuam a sofrer e por todos nós que devíamos fazer muito mais. Vamos estar mais abertos e mais atentos. Por elas. Mariana está na banca da cozinha a lavar os pinceis. Recomeçara a pintar durante o confinamento. Enche telas com cor

Casualidades

  Claro que sabias. Assim que puseste o pé direito no degrau da carruagem, tiveste a certeza. O trepidar do comboio sobre os carris embalava-te os pensamentos que trazias à ilharga, naquela bolsa de couro gasta, a tresandar a saudades. Sabias, e, mesmo assim, não te coibiste de pedir um whisky com gelo e de abrir o jornal, como se tudo nesse dia fosse mera casualidade. Os quilómetros passavam-te por baixo dos pés e tu sabias que daquela janela se filtrava a luz da madrugada e que um raio lhe batia nas pestanas ainda por abrir. Ainda assim não hesitaste. E, se alguma dúvida vivia no teu peito, depressa a desfolhaste como as páginas do jornal à tua frente. Soubeste o tempo todo. Na cama, ela abria os olhos e passava a mão pelo teu lado, já frio. Tinha a certeza de uma nota tua colada na porta do frigorifico e talvez um beijo deixado na caneca do café. É que ela, como sabes, não sabia. Ela acordava a pensar na lasanha que ia fazer para o almoço e na lingerie que ia estrear. Ela levantav

As pessoas casulo

  As pessoas de vidro , às vezes, transformam-se em pessoas casulo. Quando se cansam de ser fustigadas pelo vento que não as quebra, recolhem-se, viram-se para dentro e alimentam-se do silêncio. Encerradas no calor do próprio corpo, encolhidas numa alcofa que as priva do mundo e ao mundo delas, deixam a luminosidade lá fora. O casulo não é uma capa para a tristeza, ou mágoa, ou rancor. Antes a proteção de um corpo que se dilui em si próprio, decanta-se ou desencanta-se, ou o inverso. Acorda sonhos e embala razões que tragam transparência nas opacidades dos dias. Fora do casulo o mundo quer saber porquê. Quer entender. Quer razões. Clama por rótulos. Por padrões. E as pessoas de vidro não sabem dizer as coisas que não se medem em palavras. Dentro do casulo, querem apenas sossego e o pensamento adormecido. Nesta metamorfose não se criam asas. Raras vezes, do casulo nascem borboletas. Nem é isso que procuram. Enrolam-se nas dúvidas que conseguem tornar certas e se correr bem, saem

A bolha em que nós vivemos

  Porque temos uma casa luminosa, com cheirinho a assado ao domingo, lençóis de flanela no inverno, chá gelado no verão. Porque temos uma família que se preocupa e amigos que gostam de nós todos os dias. E uma manta sobre as pernas quando vemos televisão. Porque não sabemos o que é fome e às vezes, por engano, chamamos fome à gulodice. Nem sabemos o que é ter nas costas o frio gelado de quem se deita nos passeios. Porque temos dinheiro para o café, um almoço à beira mar, o maço de tabaco ou o livro novo que queremos tanto ler. Porque temos emprego, mesmo quando, ao domingo à noite, nos chateia tê-lo. E porque temos vizinhos que batem à porta a trazer aletria. E um gato e um cão. E daqui a uma semana ou duas pomos lenha na lareira, mais um cobertor na cama ou ligamos o aquecedor. E, quando dezembro chegar, teremos luzes de natal e presentes, sonhos e rabanadas. Mesmo em ano de pandemia. Então, numa tarde de sábado, debruçados sobre as panelas de arroz, tentando multiplicar

Todos os lugares são impossíveis.

  Era nosso o mundo. Os lugares inóspitos, as florestas de faias com folhagem densa, o mar revolto, o sol a escaldar a pele e a chuva tagarela nas pedras da calçada. Todo o lugar que matizámos com os nossos tons, com as nossas imprecisões. Tornámos cada um possível, apesar dos contornos dúbios e das sombras equívocas. Pegavas-me na mão e saltávamos entre as azedas, até ao ribeiro, os pés a escorregarem nos seixos húmidos. Ouvíamos piar o pássaro e tu contavas-me histórias dos outros dias. Prometias que o mundo era nosso e eu acreditava em cada palavra que te saía da boca. Eras o meu dogma, a minha certeza absoluta. Nas tardes solarengas de inverno, metíamo-nos no carro, uma cassete de fita gasta a tocar, eu ao volante, tu a desafinares os duetos, e íamos até à praia, levando livros e sandes de queijo fresco. - Cantas tão mal! - dizia-te, e tu rias. Eras triste quando rias. Tinhas lágrimas na gargalhada. Devia ter desconfiado. Às vezes, nos nossos passeios chovia e eu, difer