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As pessoas casulo

 

As pessoas de vidro, às vezes, transformam-se em pessoas casulo.

Quando se cansam de ser fustigadas pelo vento que não as quebra, recolhem-se, viram-se para dentro e alimentam-se do silêncio. Encerradas no calor do próprio corpo, encolhidas numa alcofa que as priva do mundo e ao mundo delas, deixam a luminosidade lá fora.

O casulo não é uma capa para a tristeza, ou mágoa, ou rancor. Antes a proteção de um corpo que se dilui em si próprio, decanta-se ou desencanta-se, ou o inverso. Acorda sonhos e embala razões que tragam transparência nas opacidades dos dias.

Fora do casulo o mundo quer saber porquê. Quer entender. Quer razões. Clama por rótulos. Por padrões. E as pessoas de vidro não sabem dizer as coisas que não se medem em palavras. Dentro do casulo, querem apenas sossego e o pensamento adormecido.

Nesta metamorfose não se criam asas. Raras vezes, do casulo nascem borboletas. Nem é isso que procuram. Enrolam-se nas dúvidas que conseguem tornar certas e se correr bem, saem do casulo com os pés a assentar na terra e os limites colados ao céu.

Não querem mudar, as pessoas casulo, ao contrário das lagartas. Querem um aconchego solitário e seu. Das metamorfoses, buscam apenas o imutável.


foto @the.tiagolourencoph

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