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A mostrar mensagens de fevereiro, 2021

Crónica de uma violência anunciada - 2

  Laura permanece sentada no sofá, sem dar conta do tempo a passar. Já não é na mulher morta na praia que pensa. Pensa em Helena. Quando a conheceu, Helena irradiava vivacidade. Tinha olhos de gato que mudavam de cor consoante as emoções. Podiam ser amarelo rancoroso, quase manteiga rançosa, podiam ser brilhantes como pálidas esmeraldas. Tudo em Helena era paixão, era forte, era puro. Plena de convicções e vontades. Laura refletia muitas vezes que gostaria de ser um pouco assim, ter aquela força. Até ver Helena quebrada. Na queda, Helena também foi grandiosa. Partiu-se com estrondo, estilhaços a voar por todo o lado. E foi assim, em cacos, que Laura a encontrou. Foi assim que a apanhou do chão, com o sangue seco no rosto e o lábio inchado, o corpo a tremer, quase nu. A blusa rasgada a denunciar todo o estrago interior. Levou Helena ao hospital e acompanhou-a à esquadra. Sentou-se com ela à beira-mar e pegou-lhe na mão. As ondas recolhiam, enrolavam e espraiavam aos seus pés numa

Querer ou não querer, não é questão

  Somos seres sociais. Os nossos quereres ou não quereres são fortemente condicionados por uma série de regras e convenções. E até convém que assim seja, partindo do pressuposto que vivemos em países democráticos, livres, onde a cada indivíduo é permitido fazer escolhas, dentro dos limites da lei e sem interferir com direitos alheios. Hoje ouvi uma notícia curiosa, mas não inédita, sobre a polémica no Qatar relacionada com o facto de, numa prova do circuito mundial de voleibol de praia, as atletas serem obrigadas a jogar usando calças e camisola, em vez de bikini. São já várias as vozes a repudiar esta imposição. Aqui estamos no outro lado do espectro (ainda não no extremo a que corresponde a violação dos direitos humanos, mas a caminho), quando a sociedade impõe regras que atentam contra a liberdade individual. Não podemos, nem devemos, compactuar com situações limitadoras de direitos fundamentais como seja, neste caso, a perda do direito a envergar o equipamento oficial de determin

Crónica de uma violência anunciada - 1

Laura olha a mulher encolhida na cadeira à sua frente. Observa-lhe o pulso negro.   Ouve-a com o mesmo desinteresse de quem folheia uma revista gasta, na sala de espera. - Ele não queria magoar-me. – explica ela - Estava só a segurar-me. Eu é que fico marcada com muita facilidade. Laura está cansada. Nota as raízes oleosas do cabelo da mulher, o risco a mostrar a falta de tinta. Não consegue evitar uma ponta de desdém. Entende com repulsa do marido. Pesa-lhe a vergonha por esse pensamento, mas não tanto que a arranque à letargia. - Já pensou deixá-lo? – pergunta, sem verdadeiro interesse. A outra arregala os olhos. Responde-lhe com a voz vibrante de incredulidade. - O meu marido ama-me, doutora! Não fale do que não sabe! Dê-me a receita, por favor, que tenho pressa. Escreve a prescrição. Está cansada. Quer acabar o dia e ir para casa. Pega na folha que sai da impressora e estende-a à mulher. - Aqui tem. Não se engane na dose. Precisa de mais alguma coisa? A mulher fit

Quando a vida não muda, só que nós.

Não somos iguais todos os dias. Não temos sempre os mesmos desejos, as mesmas ambições, ou as mesmas resignações. Sem generalizar ou ter a presunção de saber o que pensam/sentem os outros. Sei de mim. E mesmo assim. Há dias em que nada me apoquenta. Deixo a vida rolar e quase creio que tenho tudo o que quero, tudo o que preciso. Que, conserve-se esta vida pacata, e serei sempre feliz. Com alguns sobressaltos, mas quem não. Isto acontece quando o bicho dentro de mim anda sonâmbulo. Amolecido, na modorra das tardes, quieto em manhãs preguiçosas. E eu, que bem o conheço, aguardo. Sei que quando desperta vem cheio de ideias. É um bicho que, pese embora, durma pouco, sonha que se farta. Sonha acordado e fala dentro da minha cabeça (ocasionalmente em inglês) sobre as suas inspirações, nunca ponderando se o momento é oportuno. Para ele não são empecilhos as reuniões de trabalho, prazos para cumprir, funerais, ou horas de deitar. Não. Se tiver ideias para partilhar, cá vai disto. Mes