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Crónica de uma violência anunciada - 2

 

Laura permanece sentada no sofá, sem dar conta do tempo a passar. Já não é na mulher morta na praia que pensa. Pensa em Helena.

Quando a conheceu, Helena irradiava vivacidade. Tinha olhos de gato que mudavam de cor consoante as emoções. Podiam ser amarelo rancoroso, quase manteiga rançosa, podiam ser brilhantes como pálidas esmeraldas. Tudo em Helena era paixão, era forte, era puro. Plena de convicções e vontades. Laura refletia muitas vezes que gostaria de ser um pouco assim, ter aquela força.

Até ver Helena quebrada. Na queda, Helena também foi grandiosa. Partiu-se com estrondo, estilhaços a voar por todo o lado. E foi assim, em cacos, que Laura a encontrou. Foi assim que a apanhou do chão, com o sangue seco no rosto e o lábio inchado, o corpo a tremer, quase nu. A blusa rasgada a denunciar todo o estrago interior.

Levou Helena ao hospital e acompanhou-a à esquadra. Sentou-se com ela à beira-mar e pegou-lhe na mão. As ondas recolhiam, enrolavam e espraiavam aos seus pés numa cadência imutável. Mas os olhos de Helena não viam. Tinham perdido o brilho e as variâncias de cor. Foi numa voz monocromática que lhe contou como se tinham sucedido os abusos e como ela tinha desculpado, permitido. Falou-lhe da sua vergonha, do orgulho que lhe fechou a boca. E enquanto falou, rolaram-lhe pelas pestanas os últimos resquícios de esmeraldas.

Depois dessa tarde, Helena deixou de atender o telefone quando Laura ligava. Nas raras vezes que se cruzaram, Helena vinha com pressa. Laura soube, posteriormente, que a queixa havia sido retirada.

Sente uma mão no antebraço e estremece.

- Mamã, a que horas chega o papá?

Olha para o filho, tão pequeno ainda, os pezinhos de dedos gorduchos a arrefecer no chão de mármore, e levanta-se. Pega no menino ao colo, apertando-o contra si.

- Não sei Miguel. A mamã vai-te contar uma história.

De joelhos ao lado da cama do filho, afaga-lhe o cabelo transpirado. A respiração é tranquila e tem um pequeno sorriso, de quem se diverte no primeiro sono.

Sente a ternura transformar-se em raiva, um grito encurralado na garganta. Será que Eduardo dá conta de todos os pequenos momentos que lhe fogem por meio de repetidas ausências?

Perante a recordação demasiado nítida de Helena desabando convulsivamente nos seus braços, Laura, a medo, interroga-se onde fica o limite para as desculpas. Até onde vai permitir e permitir-se?


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