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Mensagens

A mostrar mensagens de janeiro, 2021

Nós, mulheres

  Hoje o dia começou de forma diferente. Estava nervosíssima. Nunca tinha feito nada semelhante e estava nervosa. Levantei-me cedo, tomei pequeno-almoço rápido, fui levar a Ritinha aos vizinhos para não fazer barulho e sentei-me na sala, caderno de apontamentos aberto, garrafa de água, experimentando a luz. Convidaram-me para gravar um pequeno programa sobre o machismo. E eu, a escrever nado em águas que conheço. Já a falar, tenho receio de perder o pé. O meu maior receio era ficar, subitamente, sem nada para dizer e instalar-se um silêncio incómodo, comigo especada a olhar para a câmara e as minhas interlocutoras, embaraçadas, a pensar na argolada em que se tinham metido quando acharam que era uma boa ideia darem-me esta oportunidade. Afinal, nada disso aconteceu. Mais tempo houvesse e mais teríamos conversado porque, afinal, nós mulheres, somos parecidas. Temos dores parecidas. E precisamos de falar sobre elas. E precisamos de ouvir sobre elas. Séculos de história, e de hist

Na (tua) terra seca

Estirado à sombra, na modorra do entardecer, tem os lábios gretados e a garganta seca. Falta-lhe ânimo para beber. Desde que ela o deixou, pesa-lhe o corpo a mover-se e, assim, vai-se afundando na imobilidade do tempo sem ela. Parece-lhe que, a cada alvorada, é um pouco menos homem. Como se uma transparência o fosse consumindo a partir de dentro, até ao momento em que, chegando à derme, o fará desaparecer. Deambula, horas, sem sair do sítio, perdido num monólogo que lhe dirige, esperando que, da ignorância dela, chegue apaziguamento. É num timbre andrajoso que lhe fala: - Sabes, Rita, na curva do caminho sinto o teu perfume de maçã madura. Tantos dias, Rita, mastigando as silabas do teu nome e continuam a ser poucas para te cobrir o corpo. Há vezes, Rita, em que os meus olhos se afogam no horizonte, de tanto perscrutar a tua sombra. Onde estás, Rita, que contigo levaste a vontade que me arrancava à terra seca do chão? Ele, sempre ausente de respostas, tem os sentidos gastos d

Só.

Olho-te. Nos sonhos, que é quando me sinto à vontade. Longe de vislumbres teus. Sozinha. Foi assim que me deixaste. A apanhar os restos, espalhados pela carpete. Dei-te tudo. Dei-me toda. Consolo-me nas sobras de uma ausência magoada. Dóis-me em todos os ângulos. Aninho-me a um canto. A sala está fria porque me dá a preguiça de a aquecer ou porque me dá ganas de castigar o corpo. Gela-me, ainda, a pele, o inverno que trazias nos olhos. Onde antes fazias fogo, deixaste um negrume de fazer inveja ao carvão. E eu. Olho as mãos que outrora te desenharam contornos. A língua humedece os lábios entreabertos e fecho os olhos beijando-te. Depois revejo-me sozinha. Foi assim que me deixaste. A beijar gotas no ar. Percorro a coxa, num contacto quase fingido, e eriçam-se os pelos ao toque. Há um gemido que arranha a vontade que de ti se lembra. Afasto as pernas, engano a tua chegada com uma caricia que não é tua. Do orgasmo desamparado, desbravo caminho ao afeto por mim própria. Sou eu

Desististe, Rita

  Entrelaça as mãos atrás da cabeça e espreguiça-se com lassidão. Uma após uma, a impressora cospe as folhas de papel. Satisfeito consigo próprio, bebe um golo de conhaque e permite-se a indulgência de um sorriso. Congratula-se pelo sucesso a que apenas ele assiste. Ela não compreendera e deixara-o a sós, com o que chamara do “seu pedantismo”. Ao vê-la sair, não largara o cigarro nem correra a impedi-la. Sabia que ela voltaria. Depois de ler, envergonhada, reconheceria que, de todas as vezes que os olhos dele não se haviam distraído nela, fora porque estavam focados na plenitude. O arrependimento dela seria o bastante e ele, magnânimo, perdoaria. Por isso, deixara-a ir e continuara a escrever, pouco notando a sua partida. Falando para ela, envolveu-a na narrativa. Não se importava que ela não o escutasse, convicto que estava de lhe adivinhar as reações. Ele próprio formulava as perguntas que ela faria e alvitrava os seus conselhos. Alimentando-se de conhaque, cigarros e presu