Avançar para o conteúdo principal

Desististe, Rita

 


Entrelaça as mãos atrás da cabeça e espreguiça-se com lassidão.

Uma após uma, a impressora cospe as folhas de papel. Satisfeito consigo próprio, bebe um golo de conhaque e permite-se a indulgência de um sorriso. Congratula-se pelo sucesso a que apenas ele assiste.

Ela não compreendera e deixara-o a sós, com o que chamara do “seu pedantismo”.

Ao vê-la sair, não largara o cigarro nem correra a impedi-la. Sabia que ela voltaria. Depois de ler, envergonhada, reconheceria que, de todas as vezes que os olhos dele não se haviam distraído nela, fora porque estavam focados na plenitude. O arrependimento dela seria o bastante e ele, magnânimo, perdoaria.

Por isso, deixara-a ir e continuara a escrever, pouco notando a sua partida. Falando para ela, envolveu-a na narrativa. Não se importava que ela não o escutasse, convicto que estava de lhe adivinhar as reações. Ele próprio formulava as perguntas que ela faria e alvitrava os seus conselhos.

Alimentando-se de conhaque, cigarros e presunção, dormiu a desoras e escreveu como um sonâmbulo, ébrio, absorto no mundo que criava. Sozinho, figurou na ausência dela o crítico que lhe faltou. Sem saudades, ela bastou-lhe como uma extensão de si próprio.

Nesta aurora fria de janeiro, sete meses volvidos sem que o tocasse a falta dela, escreve as derradeiras palavras. E com o ponto final, embate na solidão.

Levanta-se, enquanto aguarda o fim da impressão, caminha até à lareira e espevita as brasas.

Depois, pega nas folhas, ata-as com uma fita e, alisando a primeira, escreve a dedicatória:

“Está pronto, Rita.”

Retorna à lareira e pousa o manuscrito no braseiro. De cócoras, fica a ver o papel enrolar-se no calor das labaredas.

O editor desistira dele na semana anterior. Como, sete meses antes, desistira ela.

Ele prosseguira, escrevendo, com orgulho, pousado no ombro, por companhia.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Mudanças

  Vais ter de mudar de casa, lamento, já não cabes aqui. Empacotei as tuas coisas. Quero que saias já. Fiz a partilha sozinha porque a casa é minha. Levas as noites quentes, o meu sorriso e a televisão. Ah, e levas também os orgasmos. Metade eram falsos. Com as madrugadas fico eu. São as horas em que escrevo melhor. Também guardo o cobertor e o gato. Não precisas de confortos. A culpa, deitei fora. Não tapava nem frinchas. Pelo meio das arrumações, encontrei um bilhete, pingado de café, “compra-me tampões. SEM APLICADOR!”, com um coração no canto, a piscar o olho. Rio-me. Sobra de nós uma hemorragia inútil. Abro uma garrafa de tinto e sento-me, no chão da cozinha, a brindar aos infortúnios. Tens à porta a mala e dois caixotes. Levas o bengaleiro, detesto os casacos pendurados na entrada. E os amigos, com quais ficas? Que sejam eles a escolher. Por mim, dois ou três bastam. Não toques à campainha. Vê lá se, ao menos desta vez, trazes a chave contigo. Deitei a tua escova de

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordinário

Manifesto

  Esta noite tive um sonho demasiado lucido. Se acreditasse em fenómenos paranormais, diria que viajei num universo paralelo. A sala era luminosa. As pessoas recostavam-se, dispostas em hemiciclo. O orador falava, embalando a assistência. - O coração é um músculo cuja função é bombear sangue e provocar mortes súbitas. Para uma morte tardia, não devemos subverter este princípio. As palavras flutuavam, como uma melodia, conduzidas pela brisa morna. - Os indivíduos, ao atribuir ao musculo estímulos para os quais não foi concebido, como amar, sobrecarregam-no e acabam por danificá-lo. O amor tem propriedades corrosivas que provocam lesões irreparáveis nos tecidos do coração e que, transportadas pelo sangue, se espalham às outras partes do corpo. As pessoas ouviam e anuíam, perante aquela explicação cabal para as dores que sentiam. As pestanas carregavam-se de lágrimas. As chagas que os afligiam mais não eram, afinal, que o resultado do uso inadequado do coração. - Como qualqu