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Mensagens

A mostrar mensagens de setembro, 2020

Do rio erudito

  Deitada à sombra, na margem daquele rio erudito, que lhe falava com palavras caras, narrando uma história floreada e complexa, ela, num luxo descansado, deixava a luz que se filtrava pela copa das árvores toldar-lhe os sentidos. Ali, na penumbra, travava longas conversas com a água que corria, incessante, ouvindo-a falar de sentimentos servidos como iguarias, em colheres doentes, que faziam quem os tragava sucumbir a desesperos e desejos vãos. Respondia-lhe o rio, em gorgolejos transparentes, arrastando na velocidade saborosa da corrente as razões dos desamores antigos e dos sonhos escangalhados. E ela, pousando a cabeça no leito húmido, semicerrava os olhos num meio sorriso. O rio discorria deixando-lhe a pele descansada, lavando cicatrizes, queimaduras e arrepios, até quase lhe levar também a memória, essa pequena pérola que, fazendo as vezes de uma ostra, ela cerrava firmemente no interior. Porém o rio, que além de erudito era sensato, tinha todo o tempo do que é eterno. Nos

Amor íngreme

Vivemos um amor íngreme, deitado à pressa, numa cama estreita, com lençóis amarrotados. Entregámo-nos zangados, com raiva, com gritos silenciados pelo ruido da chuva intensa a bater nos vidros. O teu humor azul escuro, tão denso como a noite lá fora, ditava a queda daquela subida a pique e o desmoronar de todos os desejos que tínhamos por despertar. Procurámos palavras que não dissemos e, não as encontrando, mantivemos o silêncio teimoso, mais por medo do que por respeito, pois de tudo o que despíramos, sobrava-nos despir a culpa que nos cobria a pele.  Toda eu doía e o teu olhar era baço e esgotado. Deitada de lado sobre o colchão ainda morno, o rosto apoiado no antebraço, a boca entreaberta, fitei-te com olhos de chocolate amargo, e não disse nada. Quis confessar que te amava, mas já todo o amor (foi amor?) resvalava a pique pelo declive da paixão que o sublimara. Fora um instante fugaz e insano. Embrulhados, no chão, já a misturar-se com o cotão da alcatifa verde, jaziam os sonhos,

Beira mar

    Tenho a maresia no coração e a areia na pele. Tenho a certeza das ondas a rebentar-me no peito. Sou da praia vazia, sem gritos de crianças e pregões de gelados. Sou do areal imenso e deserto, solitário, aberto ao vento. Sou das rochas com limos a escorregar debaixo dos passos. Sou do mar forte e frio que dói nos ouvidos e arde nos lábios secos. E sou do mar plácido, azul, transparente de promessas, que embala o sal que trago nos olhos. Sou do mar cinzento, com vagas altas a desfazerem-se em espuma. Sou do mar prateado, ponteado a diamantes solares que iludem as deceções. Sou do mar verde das algas que se entrelaçam nas pernas e devolvem ao areal as conchas que cortam os pés. Sou da areia molhada que se cola à pele e da areia seca que, quando encosto o ouvido, traz o tranquilo murmúrio da saudade. Sou da beira-mar. Volúvel, sem contornos, sem limites, sem chão firme. Cada onda a sulcar fundo a areia, nesse ritmo infalível, a mover os alicerces e, sem fazer promessas vã

As meninas vão para a escola

  A natureza prossegue, indiferente. Todos os anos, quando começa setembro, daquela terra adormecida e inóspita, um caule verde, comprido, fura o seu caminho que culmina numa flor de campânula cor-de-rosa. Ensinaram-nos, na ilha Terceira, depois de cavarmos com as mãos os bolbos, à beira da estrada, que se chamam "meninas-vão-para-a-escola" por florirem sempre nesta altura do ano. Passaram 22 anos desde que ouvimos essa história. No dia 1 de setembro de 2004, quando foi cercada a escola de Beslan, na Rússia, que resultou na morte de mais de 330 pessoas, entre as quais 186 crianças que regressavam à escola, o vaso também floriu. Nesse ano, passou a ter por companhia um anjo branco a lembrar os meninos que em mais nenhum setembro voltariam à escola. Este ano, em todo o mundo, o regresso à escola é diferente. As meninas-vão-para-a-escola e os meninos também, porque tem de ser. Para bem deles, dos pais, dos professores, da economia. Com mais receios ou menos, com a angústia mai