Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de outubro, 2020

A vitima

  Os candeeiros da rua estão acesos e nuvens carregadas prometem tempestade. O edifício está quase vazio. Apenas Jorge, sentado à secretária, ouve a mulher à sua frente, com uma expressão condescendente. Faz rabiscos no bloco quadriculado, enquanto a pressão nas têmporas lhe recorda os excessos da noite anterior. A mulher tem uma equimose abaixo do olho esquerdo e um corte no lábio. A voz é fatigada, vazia de emoções. Na sobrancelha vê-se uma falha, fruto de cicatriz antiga. A história é idêntica a centenas de outras que já ouviu. Anos atrás, quando integrara a divisão de investigação criminal da polícia de segurança pública, trazia o coração transbordante dos princípios e ilusões próprios da juventude. Alto, bem constituído, com olhos verdes brilhantes, almejava ser o campeão das donzelas que o mundo maltratava. A inércia do sistema e a burocracia foram-lhe apagando o brilho dos olhos. O whisky apaziguou-lhe a ousadia. Com crescente rancor, foi descobrindo que as delicadas donzela

(ainda) machismo

  Não tenho nada contra homens, a sério que não. Até há alguns de quem gosto bastante. Não serão imensos, mas isso tem mais a ver com a espécie do que com o género. Dito isto, e correndo o risco de ser acusada de generalizações, é com tristeza que continuo a assistir a comportamento s machistas, misóginos, prepotentes, trazendo ao de cimo o “macho latino” que, se entre alguns (ou algumas) pode parecer atraente, para a maioria de nós, mulheres, e sobretudo em contexto laboral, é apenas repugnante. Começo a acreditar que há muita confusão nessas cabecinhas e que há vários pontos que interessa clarificar: 1 – Elogiar o aspeto físico e/ou dizer galanteios não vai produzir qualquer efeito no desempenho profissional da mulher, nem fornecer caráter prioritário aos vossos assuntos que ela tenha em mãos. É patético que o tentem; 2 – Enviar mensagens, e-mails, ou telefonemas com linguagem grosseira não funciona como pressão, apenas fomenta que sejam ignorados; 3 – Ser educado, prestá

Ódio mortal

    Desvio o olhar do jornal pousado na mesa do café. Não me surpreende a notícia. Apesar disso, as palavras ferem-me como uma lâmina acutilante e vergo-me perante a realidade impressa. O estômago contrai-se. Sinto a acidez subir à base da língua. Releio o título e forço a vista em cada detalhe da fotografia. Deixo algumas moedas sobre o tampo e caminho ao longo da linha de areia, contemplando o mar cinzento a desfazer-se em espuma. O tumulto da rebentação ruge-me no peito, a pulsação acelera, o ritmo da passada aumenta. Corro. O vento assobia-me nos ouvidos e forma-se uma gota de suor que desliza entre os seios. O tecido molhado da t-shirt cola-se às costas. Transpiro ódio. Um sentimento visceral que suplanta o amor. Ódio a transbordar volúpia, com uma intensidade carnal. Odeio-te com o mesmo deleite com que te amei. O desejo aceso por torturas perversas que me enchem o pensamento. Paro e deixo-me cair de joelhos na areia molhada, a mão a amarfanhar o papel, que ainda trago se

Uma mulher beija um homem - em 3 versões

  1. Aproxima-se dele, bamboleando as ancas, e beija-o com sofreguidão, o desejo a percorre-lhe o corpo. Ultrapassada a surpresa, a mão dele segura-lhe a nuca, enterra os dedos no cabelo cor de mel e corresponde ao beijo, com avidez. As mãos dela espalmadas nas costas dele, a puxarem-no para si. Era um beijo há muito ansiado e ela, cansada de esperar, resolvera ir busca-lo. Agora, vencida a expectativa, nascia dentro de si a estranha vontade de ir embora. 2.  Desenha-lhe os lábios com uma ponta de grafite quase gasta. Leve, como uma caricia a aflorar-lhe o canto da boca. Passa na folha a ponta do dedo médio, suave, a esbater os contornos, com os olhos semicerrados de prazer e um gemido entalado na garganta. Sabe-lhe os traços de cor. As sombras nas feições dele, vêm dos olhos dela, nada mais. Cola a cara ao papel e sente o odor dele, que lhe transpirou das mãos. A respiração acelera, passa devagar a língua pelos dentes e morde o indicador. Deleita-se no instante perfeito, inacaba

A mensagem

  O telemóvel vibra com a entrada de uma mensagem. Desliza o dedo pelo ecrã e, atónito, reconhece o remetente. A mão treme, o estômago revolve-se e gotas de suor perlam-lhe a testa. Abre a boca em busca do ar que lhe falta e uma reação primária incita-o a fugir. Ao fundo da sala, a porta abre-se e chamam-no. Ergue-se e caminha em direção ao gabinete onde, sentada à secretária, envolta numa luminosidade difusa e pretensamente tranquilizadora, a terapeuta o espera. Cumprimenta-o com um sorriso e indica-lhe a cadeira à sua frente. Ele não retribui o sorriso. Tem as feições congeladas, a pele é uma barreira contra o mundo exterior. As fibras dos músculos retesaram-se, os órgãos gritam em espasmo e os cabelos da nuca estão eriçados. Um ligeiro esgar no rosto dela mostra que se apercebeu. Contudo, nada refere e permanece impassível, observando-o. Durante os segundos que se arrastam ele avalia as vantagens de lhe falar na mensagem. Vê o ponteiro do relógio avançar, lento. Ela está al