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Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2021

Criança-concha

  “A produção da pérola pela ostra nada mais é do que um mecanismo de defesa do animal, quando ocorre a penetração de corpos estranhos entre a concha e o manto.”   O menino enrola o corpo sobre o ursinho e eu, numa voz que arranha a garganta, digo-lhe que lá, para onde vai, o céu tem cor de rebuçado e as nuvens são tão fofas que parecem pular. Afago-lhe o cabelo escuro e ele encolhe-se. Embalado pela cadência das ondas, murmura para o peluche, numa língua que só os dois conhecem. Tem no rosto o sal de muitas lágrimas. O urso responde-lhe, pois outro préstimo não tem. É uma criança e devia ser feliz. Não foi para a felicidade que deus inventou as crianças? Que ironias são estas? Que crianças, de que deuses? O negrume do céu funde-se no oceano trágico. O brilho das estrelas é uma paródia neste lugar inóspito onde os mergulhos se revestem de poética macabra. Nas latitudes onde a corrente é opaca e gélida, homens morrem de sede, rodeados de água. Se vencida a noite, vem o sol, nu

Desculpa-me

  Pedes desculpa, mais uma vez. A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar. Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a miúda, rabugenta, pelo pulso. Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou. Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o ranho à blusa. - Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena, duvida. Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados. Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca da camisola. O recado da educadora flutua através de mim. Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café. Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na cintura. Cheiras a dia lavado. - Vai ser diferente, agora. Quero crer-

Manifesto

  Esta noite tive um sonho demasiado lucido. Se acreditasse em fenómenos paranormais, diria que viajei num universo paralelo. A sala era luminosa. As pessoas recostavam-se, dispostas em hemiciclo. O orador falava, embalando a assistência. - O coração é um músculo cuja função é bombear sangue e provocar mortes súbitas. Para uma morte tardia, não devemos subverter este princípio. As palavras flutuavam, como uma melodia, conduzidas pela brisa morna. - Os indivíduos, ao atribuir ao musculo estímulos para os quais não foi concebido, como amar, sobrecarregam-no e acabam por danificá-lo. O amor tem propriedades corrosivas que provocam lesões irreparáveis nos tecidos do coração e que, transportadas pelo sangue, se espalham às outras partes do corpo. As pessoas ouviam e anuíam, perante aquela explicação cabal para as dores que sentiam. As pestanas carregavam-se de lágrimas. As chagas que os afligiam mais não eram, afinal, que o resultado do uso inadequado do coração. - Como qualqu