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Mensagens

A mostrar mensagens de junho, 2020

Se ele deixasse

Senta-se num dos lados da mesa, à frente dela. Ela recosta-se, cruza as mãos abaixo do peito e sorri-lhe.  Ele olha-lhe para o decote e espera. Não quer começar. Já sabe como vai ser: ela vai continuar a sorrir e a incentivá-lo a falar, ele vai responder com monossílabos e encolher de ombros e ela vai tentar adivinhar o que ele não está a dizer. Ele vai ficar cada vez mais impaciente, pensar no telemóvel sem som guardado no bolso, senti-lo vibrar, sabendo que não lhe pode mexer, e começará um tamborilar nervoso com os dedos na superfície da mesa. Ela perceberá e, sem deixar de sorrir, irá perguntar-lhe se quer atender. Ele, encolhendo os ombros mais uma vez, responderá que não é urgente. E não é. A única urgência que tem é de sair dali, de voltar ao conforto do seu silêncio. Ela está a tentar ajudar, ele sabe. Não é porque gosta dele, provavelmente não gosta mesmo nada dele. Atualmente, é difícil gostar-se dele. Ele também não gosta dela. Cobiça-lhe o decote ape

Reflexo no espelho

Acordou e estava triste. Como estava triste, sorriu. Talvez precisasse de lágrimas, mas não as conseguiu encontrar e, por isso, sorriu. Olhou-se ao espelho, a barba por fazer, a sombra pisada por baixo dos olhos, a expressão digna, de quem sofre sem doer. A dor tinha-o deixado, já não lhe deformava a expressão. A boca não se contorcia em desespero, quando tentava uma gargalhada. Era um homem gasto. Tinha amado, tinha lutado, tinha perdido. Fora enganado pelo destino. À sua frente, no espelho, olhava-o um sábio derrotado. Tanta coisa tinha aprendido. Tanta coisa tinha esquecido depois. Pensou que não ia aguentar a dor, o abandono, a solidão. Porem, quando hoje acordou estava triste. Apenas triste. Já não doía. No espelho, através das pestanas espessas, o olhar baço devolvia-lhe a expressão de quem já aprendeu mais do que devia. Olha-se como a observar um estranho, com a objetividade que quem vê um filme que deixou de ser o seu. Passou de protagonista a espe

Quando o egoísmo se tornou cool

Vou-vos dizer uma coisa, isto do dever de confinamento, uso de máscara e distanciamento social é uma merda. Ainda mais agora que começou o verão. As temperaturas vão novamente subir e vêm com a porcaria dos semáforos na praia. Às tantas, apetece-nos mesmo dar um mergulho, chegamos lá, e pimba! sinal vermelho.  Eu, pessoalmente, sou contra esta cena da pandemia. Já lixou o Santo António em Lisboa, vai estragar o São João e se não se põem ao alto, nem os pescadores vão festejar a sério o São Pedro. Até a Queima das Fitas foi retirada aos estudantes que agora, claro, têm de inventar outras festas. Os jovens precisam de se divertir, desgraçados, que estes meses todos sem aulas deixou-os em baixo. E os pais precisam dos filhos fora de casa, caraças!, já ninguém os aguenta. Os velhos, que nem sequer acedem a redes sociais têm que ir socializar um bocado. E os restantes, das faixas do meio, idem. É preciso fazer coisas, pelo bem da economia e da sanidade mental. Eu, é como vos d

No jardim

Está lindo o jardim. Não há dúvida que a natureza beneficiou do confinamento que a pandemia impôs. Pergunta a mãe, com toda a legitimidade, afinal do que é que eu tanto gosto no jardim. Isto porque eu não gosto de jardinagem, não gosto de meter as mãos na terra, mato tudo o que é planta, exceto catos, que não se deixam morrer com pouco. Eu nem sabia que aqui no jardim tínhamos duas nespereiras, e (imagine-se!) que o arbusto a que, nas noites de bebedeira chamávamos Poupas, era afinal uma romãzeira.  Mas do jardim, gosto de tudo. Dos verdes luminosos, dos malmequeres, das flores de maracujá. Da buganvília que teima em cair sobre o muro do vizinho, do sol a brilhar na piscina e das sombras que se alongam ao fim da tarde. Do jardim gosto, sobretudo, das memórias que habitam todos os cantos. Tenho memórias, se calhar induzidas pelas fotografias que vejo, de ser menina e correr em passo incerto, com o vestido vermelho às bolinhas a esvoaçar. Os bisavós tão velhinhos,

Ser triste ou não, eis a questão.

“You cannot develop strong characters  out of the indulgence of  self-pity” Somos latinos, eternos sofredores. Desfiamos rosários de pranto que choramos a cantar. Morremos de saudades e de amor. Sentimo-nos nobres nos nossos desgostos. Acreditamos que há dignidade em estar triste. Um porte altivo, uma maturidade, quiçá uma lucidez que os outros desconhecem, perante os desaires da vida. Atentamos na felicidade como um sentimento superficial e não lhe queremos dar maior dimensão do que a de um estado de espírito efémero. Passageiro, pois claro, entre as misérias que nos aguardam. Conheci uma vez um rapaz que afirmava, com plena convicção, que tinha nascido para ser triste. A princípio a ideia seduziu-me. Atribui firmeza de carácter e um não-sei-quê de encanto àquela resignação. Mas depois de ouvir as queixas e as maldades sucessivas a que a vida o submetia (e que, convenhamos, geralmente não passavam de merdices), forçada a refletir sobre a matéria, a resign

Não somos todos iguais.

Não somos todos iguais. Uns são brancos, outros negros, outros amarelos. Uns são cristãos, outros muçulmanos, budistas, ateus. Uns são magros e altos. Outros são baixos. Outros são obesos, alguns são anoréticos. Uns comem carne, outros são vegan , outros passam fome. Uns trabalham, uns são preguiçosos, uns roubam e alguns matam. Uns são heterossexuais, outros são homossexuais, outros fazem voto de castidade. Não somos todos iguais. Uns são crentes, outros perderam os sonhos e alguns nunca acreditaram em nada. Uns são corajosos, outros vivem com medo. Uns gritam, outros aguardam silenciosos e alguns são forçados a estar calados. Uns defendem a justiça, outros têm medo dela, outros praticam atrocidades. Uns são tolerantes, outros são empáticos, outros são ditadores. Uns são bons, uns fecham os olhos, outros são cruéis. Não somos todos iguais. Mas por alguma razão, uns acreditam que são melhores do que outros. “Mamã, aquele menino é feito de chocolate?” pergunta uma cr

Baloiço

No parque infantil o baloiço oscila, vazio, ao sabor do vento matinal. As pessoas passam e olham sem ver, sem reparar no silêncio provocado pela ausência das crianças. Não há vozes, nem gritos. Não há choros, nem gargalhadas, nem birras. Não se ouvem disputas pelo mesmo brinquedo, não se ouvem adultos a ralhar, entre embaraçados e impacientes. Não há mães apressadas a dizer que têm de ir fazer o almoço, nem pais distraídos a olhar para o visor do telemóvel. Um parque infantil vazio é uma visão triste. Não há chapéus nem galochas, nem cordões desapertados, nem joelhos esfolados. Melhor seria levar também os baloiços, para que não ficassem a oscilar solitários. Assim como eu, a oscilar sobre mim própria, sem sair do lugar. Sou um baloiço sozinho no ar, sem tocar o chão e sem levantar voo, suspensa entre momentos. Não paro, mas também não vou. O meu ânimo é um pêndulo, movendo-se num ritmo de indecisão constante. Como um baloiço, balanço. Como um baloiço sou triste quando balanço