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Ser triste ou não, eis a questão.







“You cannot develop strong characters
 out of the indulgence of self-pity”


Somos latinos, eternos sofredores. Desfiamos rosários de pranto que choramos a cantar. Morremos de saudades e de amor. Sentimo-nos nobres nos nossos desgostos.
Acreditamos que há dignidade em estar triste. Um porte altivo, uma maturidade, quiçá uma lucidez que os outros desconhecem, perante os desaires da vida.
Atentamos na felicidade como um sentimento superficial e não lhe queremos dar maior dimensão do que a de um estado de espírito efémero. Passageiro, pois claro, entre as misérias que nos aguardam.
Conheci uma vez um rapaz que afirmava, com plena convicção, que tinha nascido para ser triste. A princípio a ideia seduziu-me. Atribui firmeza de carácter e um não-sei-quê de encanto àquela resignação. Mas depois de ouvir as queixas e as maldades sucessivas a que a vida o submetia (e que, convenhamos, geralmente não passavam de merdices), forçada a refletir sobre a matéria, a resignação que antes achara louvável, começou a incomodar-me. A autocomiseração é interessante porque legitíma (para o próprio, pelo menos) a demissão de qualquer objetivo de vida, sob o apanágio de um sentimento de incomensurável tristeza. Confere uma espécie de passaporte para o egoísmo, porque, enfim, não deixa muita margem para dar o que quer que seja. Há ainda um sentimento de superioridade na tristeza, como quem não quer arriscar-se na futilidade que é a alegria, levada a cabo por um bando de insensatos.
Talvez eu não saiba do que falo porque, enfim, sou uma pessoa cheia de sorte. Dirão que as agruras da vida me têm passado ao lado e os anos vão-se sucedendo numa alegre despreocupação. E é quase isso. Se retirar algumas lágrimas, quase sempre em silêncio, mas ocasionalmente com muitos gritos, ou os soluços até faltar o ar, se esquecer os medos terríveis, os ataques de pânico e os desmaios de susto, se desvalorizarmos os dias em que a esperança fica presa por um fio, tudo o resto corre bem. Mesmo aqueles dias tão negros que não me lembro se o sol chega a nascer, são antecedidos e sucedidos de outros tantos em que o astro brilha em todo o seu esplendor.
Sou uma gaja de sorte, não há dúvida. E se duvidas houvesse, muita gente haveria para confirmá-lo. Aliás, é pela sorte que tem que esta gaja (diz que) não chora.
Posto isso, se quiserem, são livres de acusar-me de insensibilidade, de ser bruta, de não entender. Mas estão enganados, eu entendo. Só não gosto. Não gosto de gente a encher o peito a dizer “Eu sou uma pessoa triste, a vida não corre como eu gostaria” numa busca incessante da piedade alheia. Não aprecio o culto da tristeza, nem dos desgraçadinhos. Está dito, podem soltar os cães.
A vida não é um mar de rosas e, se porventura parecer, decerto virá com espinhos. Ninguém prometeu que era sempre fácil e, se prometeu, mentiu. É mesmo assim.
Há vidas desgraçadas, claro. Eu, que como disse, sou cheia de sorte, sei pouco o que isso é. De modo que eu, por respeito a essas vidas, que são realmente duras e escuras e tristes, acho que faço melhor serviço em ficar calada do que em lamentar-me demasiado.
Sinto que tenho alguma obrigação de procurar a felicidade. E, sempre que me for possível, de a partilhar com quem está à minha volta.
A felicidade é contagiosa, sabiam? Como um vírus. Daqueles a que ninguém devia querer estar imune.

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