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Virada do avesso


 

Às vezes o dia vira-me do avesso.

Ou as pessoas. Ou o tempo. Às vezes é porque está sol e vento. Ou chuva e frio. Ou porque anoitece demasiado cedo. Ou porque as horas não me chegam. Ou porque o tempo não passa.

Fico indecisa se me apetece gritar ou afundar-me no sofá debaixo de um cobertor. Tenho uma vontade imensa de comer porcarias. Não como para não me irritar ainda mais com a balança. Bebo café demais. Fico elétrica para vencer a letargia.

Quero praia, mas seria incapaz de tirar a roupa para mergulhar.

Tudo me irrita.

Sei que fico difícil de aturar. Como quando tenho sono ou fome. Sei que quando estou assim, acaba por levar quem não tem culpa. E, por esse motivo, os anos ensinaram-me a tentar ficar calada.

Teclo respostas azedas a e-mails estúpidos. Apago e rescrevo, com secura diplomática. Ignoro mensagens e chamadas.

Se não querem uma resposta torta, não falem comigo. Desculpem lá, mas “jogo de cintura” não faz o meu género. Nem gente com a mania de que é dona disto tudo.

Houve um tempo em que eu achei que até podia vir a ter jeito para isso. Mas olhem, afinal, não. O meu coração anda sempre muito perto da boca e a indignação leva-me dos 0 ao “vai-te f%#*r” em muito poucos segundos. Não tenho estômago para esperteza saloia, nem para gente a dar a volta ao texto.

E o texto também não me sai. Já escrevi e deitei fora várias páginas hoje. Até a escrita está do avesso.  E eu, com tanta coisa que queria dizer, não digo, porque não vai sair bem e depois, quando ler, vou perceber que saiu tudo ao contrário.

Pelo sim, pelo não, mais vale ficar para outro dia. Em que não haja sol, nem vento, nem chuva. Em que as horas venham na medida certa. Em que os chicos-espertos se mantenham calados.

Menos mal, que é sexta-feira. E que me aguarda um saco e um par de luvas.

Bom fim-de-semana.

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