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Mensagens

A mostrar mensagens de abril, 2020

Desenhei-te

Desenhei-te com uma ponta de grafite quase gasta. Deslizei-a pelo papel granulado como quem passa, leve,  os dedos pelo teu corpo, sentindo cada músculo ficar tenso sob a pele. Desenhei-te de memória,  sem precisar de olhar-te uma única vez. O realce de cada sombra nas tuas linhas veio do brilho dos meus olhos, nada mais.  Desenhei-te os lábios com traços leves, saboreando devagar.  Deixei escorregar a grafite como uma carícia pela curva do ombro.  Tracei-te o contorno da coxa, tremi na ondulação das costelas.  Desenhei-te como quem beija, de olhos fechados,  e, com as sensações a pulsarem na garganta, senti o sabor salgado da pele brilhante.  Se me debruçar sobre a folha sinto-te o cheiro.  Foi o odor que me transpirou das mãos. 

Pessoas de vidro

Há pessoas que são feitas de vidro laminado fosco. Daquele vidro que não quebra com a pancada e que não deixa ver para dentro. São pessoas que ora parecem frias, ora parecem luminosas, em que a chuva quando bate escorre em lágrimas grossas, como soluços silenciosos. Quando chove, viram a cara para o céu e, de lábios entreabertos, deixam as gotas geladas lavar-lhes a alma. São pessoas caladas, de superfícies planas e emoções resguardadas, que resistem aos ventos que as fustigam como canas altas num canavial, vergando e ondulando, sem quebrar. São pessoas que deixam o sol entrar com cautela, em reflexos medidos e calculados, que estendem braços e pernas nuas para se deixar amornar, apaziguar. São pessoas com medos, mas que não se dão a fragilidades. Assustam-se, encolhem-se um pouco, mas não fogem. Ocultam-se na semiobscuridade de um pequeno mundo translucido, onde a luz só entra devagar e onde, só com muita relutância deixarão entrar alguém.  São pessoas de tranquilidade

Check list para uma vida feliz

Querida filha: - A vida é sempre melhor em cor-de-rosa; - Vinho é a bebida certa. Melhor se for tinto; - Só tu é que decides o que queres para a tua vida; - Saudade é uma coisa boa. Abraços também; - Nunca se tem livros demais; - Só as crianças podem usar Crocs; - “Não consigo” só existe se tiver um “ainda” atrás; - A profundidade do decote, o comprimento da saia e a altura dos saltos é a que te fizer sentir bem; - Há músicas que têm de ser cantadas aos gritos; - Saber chorar é uma virtude; - Ninguém deve viver sem fé (seja no que for); - Um irmão é o maior presente que os pais nos podem dar; - Pensa-se melhor com um café na mão; - No amor, mais-ou-menos não é suficiente;  - Nada substitui os amigos; - Apesar do medo, arrisca; - Evita ser demasiado permeável aos humores dos outros; - Se te faz sentir bem, é bom. Não te culpes; - Exercício físico e uma alimentação equilibrada são a base de um envelhecer saudável e de uma juventude feliz;  - A família é um tesouro q

O estado a que chegámos

Andei toda a semana a tentar definir(-me) uma posição sobre as celebrações do 25 de abril, este ano.  Li e ouvi opiniões bem fundamentadas, com perspetivas e pontos de vista diferentes, por vezes opostos. Em ambos os lados do debate encontrei argumentos válidos: a urgência do patriotismo, da valorização da democracia, da celebração da liberdade, as vozes magoadas, cansadas de tanto confinamento e sacrifício, a quem dói a celebração com presença de vários indivíduos, a quem dói tudo o que vai além do essencial, o receio de que uma celebração presencial possa transmitir a mensagem errada a quem só quer um pretexto para também celebrar outras coisas, a convicção de que esta celebração vai contra o zelo no confinamento que pedem aos portugueses.  Tenho um pé em cada lado, e o coração dividido, o que acaba por ser congruente com este tempo em que estamos todos fisicamente afastados e, de alguma forma, isso aproxima-nos. Entendo e adoto esta vontade de me unir a tantos, de juntar

Escrever Escrever

Foi há um mês que retomei aqui a escrita. é estranha a percepção que temos agora do tempo, nestes dias que pouco se destingem uns dos outros. Nos meus dias tem havido muito pouco tempo de ócio e posso afirmar que há meses que não via tão pouca televisão como agora. Acho que o medo de me acostumar a ficar parada me impele a estar constantemente a descobrir coisas para fazer. Já fiz várias daquela lista de quarentena: já arrumei as t-shirts por cor, organizei e limpei armários, arranjei todos os vasos da varanda, cortei o cabelo ao marido, fiz puzzles, bebi demais, comecei a correr - ainda não fiz pão nem cortei o cabelo a mim própria e acho que vou passar essas, por enquanto. Também me inscrevi num curso online. Foi um curso de Escrita Criativa e, com muita pena minha, terminou ontem e hoje enviei o texto final. Lema: Escrever primeiro, pensar depois.  Dar oportunidade ao pensamento para fluir e passar da cabeça para o papel. Frases soltas, pedaços de conversa, sensações, dúvidas e m

A demora do semáforo

Adoro quando me apitam nos semáforos. Uma rapariga demora-se mais 10 segundos do que o necessário a arrancar e há um estupido qualquer “fuéééé fuéééé´”, todo nervosinho, já a guinar o carro para a esquerda numa tentativa de ultrapassagem. Adoro os gestos e imagino o discurso machista lá no interior do veículo “gajas ao volante é isto, deviam era estar em casa no fogão”, etc, etc, para manter a conversa num nível decente. (Aliás, adoro discursos machistas em geral. “As mulheres não devem levantar peso porque ficam com corpo de homem” ou “não acho bem que o teu marido esteja a lavar o chão” ou “andar à porrada é coisa para homem” ou “com aquele decote está mesmo a pôr-se a jeito”, isto, uma vez mais, para manter a conversa num nível decente. E, cereja no topo do bolo, os comentários mais machistas saem muitas vezes da boca das mulheres. Mas isto não ia ser um post sobre a igualdade de género portanto, agora que já fiz o meu desabafo e que aproveito para acrescentar que uma mulher

We fight!

Este é para vocês pessoal, e é sob o efeito de álcool. A garrafa de tinto continua aqui ao meu lado. Não sei se vai sair com um português muito perfeito, mas também não faz mal, porque a maioria de vós já me viu com o português todo trocado. Pelo menos hoje estou em casa, não é preciso ninguém vir trazer-me :D Gaja não chora. Ou pelo menos tenta, na maior parte dos dias. E momentos como estes, de boa disposição, copos e gargalhadas, ajudam imenso. Dão para respirar bem fundo e recuperar o ânimo. Gaja não chora. Porque faz burpees, pranchas, agachamentos, flexões… e até começou a correr. Mas tudo isso só faz sentido, só me mantem na luta, por saber que há, do outro lado da internet, mais gente na mesma luta. À distância, cada um em sua casa, mantemos a competição saudável, a picardia, os incentivos. Algumas provocações também. Gaja não chora. Mas tem saudades (imensas) vossas. Do sofrimento em conjunto, dos gritos que se ouvem na esquina da rua, de todos os f#*%-se ditos ent

E agora, um iate...

Todo o país aguarda por 6ª feira para saber o que vai ser determinado para o, já antecipado, prolongamento do Estado de Emergência. Claro que não encaramos todos da mesma forma o confinamento a que esse estado obriga e, claro que não estamos todos a passar pelas mesmas dificuldades. Evidentemente há situações muito mais dramáticas do que outras. Mas escrever, como eu li hoje, que há um grupo que “ainda tem recursos financeiros para se manter parado. Por isso, a "economia" fica em segundo plano. A quarentena é cómoda, usam o tempo para refletir, ver filmes, descansar” e outro grupo que tem “empregos, casas, negócios, tudo em risco eminente. Por isso, prefere enfrentar o risco do vírus e voltar ao trabalho”, acrescentando que “São interesses e dores completamente diferentes” e rematando com esta pérola “Não estamos todos no mesmo barco, estamos todos na mesma tempestade, mas em barcos diferentes. Uns estão em iates, outros em botes, outros em canoas que já estão afundando

Andra tutto bene

A gente faz-se forte. Cola um sorriso no rosto e manda a vida prosseguir, mesmo quando não tem muito para onde ir. A gente aguenta, anima-se, fica feliz por sossegar ou fazer rir aquela pessoa. Arranja tarefas e inventa desafios para avivar a vontade de chegar a algum lugar. Franze os olhos a tentar vislumbrar essa luz lá muito ao fundo do túnel e continua a caminhar, porque prá frente é que é o caminho. A gente impede-se de vacilar, se as pernas fraquejam dá-lhes mais uns minutos de corrida para saberem do que é que se queixam. A gente agarra-se àquilo que pode, para tornar os dias mais leves, mais alegres, mais fáceis. Para enganar o tempo e fingir que conseguimos escapar para além do espaço. A gente cria fantasias, imagina-se já noutros lugares, a rolar o corpo despido na areia morna da praia, a deixar o mar gelar os pés, ou a repousar de olhos fechados, as costas contra o tronco de uma árvore grande e velha com o vento a soprar muito leve nos cabelos. A gente perde-se em son

Doces, tentações e outras reflexões

Entre os cristãos viveu-se por estes dias a Semana Santa. São dias de jejum, de abstinência e sobretudo da reflexão do culminar da Quaresma. A partir das 15 horas da Sexta-Feira Santa, hora em que Jesus morreu, até ao Domingo de Páscoa, a Igreja remete-se ao silêncio. É, por excelência, o tempo de refletir: onde vamos, que caminho é o nosso, quem acompanhamos, quem seguimos, quem deixamos para trás, o que nos move. Esta Quaresma foi para muitos, por força da realidade em que a vivemos, mas dura de percorrer, porventura mais solitária, nalguns dias mais penosa, mas sobretudo, deu-nos mais tempo para pensar. Para estar longe da confusão e do barulho, obrigados à clausura das nossas casas, do nosso espaço, de nós próprios. Se este não foi um tempo em que nos forçámos a olhar mais para dentro, então dificilmente outro o será. Nestes dias de isolamento, que já são tantos, temos aprendido novas rotinas, novas formas de comunicar, novos espaços na nossa vida para outras cois

"Há gajas ou não há gajas?"

Ora bem, então como é que está a ser isso de passar 24h sobre 24h, 7 dias por semana, com a vossa cara-metade? Quando decidiram juntar os trapinhos e ser felizes para sempre, não contavam com isto no pacote, pois não? Pois é, mas olhem, é na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na liberdade e no confinamento. Cá por casa vai correndo bem. Definimos algumas regras e rotinas que ajudam. Cada um trabalha no seu próprio “escritório”. Eu, durante o horário de trabalho, é como se não estivesse em casa: fecho a porta, ligo o rádio e interrompo apenas para as refeições. Se precisarem de me dizer alguma coisa podem fazê-lo por wsp. As tarefas domésticas, as complicadas rotinas de compras, as entradas e saídas, também estão bem organizadas e distribuídas e entre os três as coisas têm funcionado. O meu marido anda com vontade de fazer experiências culinárias (neste momento está a fazer um bolo) e tomou para ele a incumbência de ir ao talho, o que é ótimo. O meu filho sai pouco d

Legos

Acabei o primeiro puzzle do isolamento. Não era daqueles impossíveis que nos dão cabo da cabeça, tinha 1000 peças e tinha o grau de dificuldade adequado à minha paciência. Está outro na caixa à espera. Gosto de puzzles. Mas o que gosto mesmo, mesmo, mesmo, é de legos. Ando a lutar contra a tentação de encomendar a Imperial Star Destroyer da Star Wars. Essa é a única razão pela qual lamento não fazer anos durante o isolamento: legitimava pedir esse presente. Os legos são um bocadinho mágicos. Pode-se pegar nas peças, montar desmontar, seguir as instruções ou inventar coisas sem sentido, ou com um sentido só nosso. Pode-se ser completamente organizado e disciplinado, manter ordens e sequências, ou dar largas à criatividade e criar o que vai na imaginação. É por isso que os legos vão muito mais além que os puzzles e outros jogos: não estão limitados a uma única forma. Com os legos não temos de seguir apenas as instruções que alguém desenhou, pelo contrário. A magia dos legos é preci

Na prosa da minha vida, és quando acontece poesia

Já tinha decidido que não ia escrever hoje. Passei o dia ao computador e tinha reservado o serão para uns trabalhos de costura. Mas de repente o meu coração partiu-se ao meio e caiu-me aos pés e as lágrimas começaram, grossas, a escorrer silenciosas até ao queixo. Este não é um texto alegre.  Neste quebro todas as promessas e choro cada palavra que aqui escrevo. Também tenho saudades tuas, minha querida. Tantas, que doem no estômago e tremem nos dedos enquanto batem as teclas. Tantas, que me custa respirar fundo, que me custa sorrir ou rir porque não oiço o teu riso. Tantas, que deixei de cantar de na cozinha ou no corredor porque me faltas tu no dueto. Tantas, que durmo com o teu pijama e visto as tuas camisolas para te sentir mais perto. Tantas, que me reinvento todos os dias antes de te telefonar para tentar que tu não percebas a mágoa na minha voz. Uma das vezes que foste, depois de vires a casa passar o fim de semana (uma vez que nos doeu mais a despedida, lembras-te?)

“Acontece-vos pensar que daqui a nada vão acordar deste sonho esquisito?”

Nos primeiros dias de isolamento acontecia-me com frequência. Cheguei a perguntar ao meu filho, na cozinha, se isto era mesmo real. Agora já não, mas continuo a ter uma certa sensação de irrealidade. Ontem à tarde estive a rever o Outbreak, com o Dustin Hoffman e Morgan Freeman (entre outros, no excelente elenco) e na primeira, vá lá, meia hora de filme, era estranhamente real. Depois transforma-se na típica coboiada americana e o meu interesse foi reduzindo até à semi sonolência. A questão é que, atualmente, a realidade supera largamente estes cenários de ficção e subitamente reparamos em tudo o que está errado no filme porque nós estamos a vivê-lo e sabemos que não acontece assim. De repente passámos de espectadores a protagonistas num dos grandes dramas da História da humanidade. Esta noite sonhei muito. No meu sonho, eu cheguei ao ginásio para treinar e o quadro estava tão longe que eu não conseguia ler o treino e havia gente e material espalhado por todo o lado e eu