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O estado a que chegámos

Andei toda a semana a tentar definir(-me) uma posição sobre as celebrações do 25 de abril, este ano. 

Li e ouvi opiniões bem fundamentadas, com perspetivas e pontos de vista diferentes, por vezes opostos. Em ambos os lados do debate encontrei argumentos válidos: a urgência do patriotismo, da valorização da democracia, da celebração da liberdade, as vozes magoadas, cansadas de tanto confinamento e sacrifício, a quem dói a celebração com presença de vários indivíduos, a quem dói tudo o que vai além do essencial, o receio de que uma celebração presencial possa transmitir a mensagem errada a quem só quer um pretexto para também celebrar outras coisas, a convicção de que esta celebração vai contra o zelo no confinamento que pedem aos portugueses. 

Tenho um pé em cada lado, e o coração dividido, o que acaba por ser congruente com este tempo em que estamos todos fisicamente afastados e, de alguma forma, isso aproxima-nos. Entendo e adoto esta vontade de me unir a tantos, de juntar a voz a milhares de outras vozes e de me sentir parte deste povo que luta, que sofre e que vence. É o povo desse abril que celebramos, esse abril que nos devolveu o orgulho de sermos portugueses. Depois de ler, pensar e debater o assunto, graças a essa liberdade que celebramos, continuo a não estar convencida de que esta é a melhor solução. Podíamos fazê-lo de outra forma. Havia (há sempre) outras opções.

No entanto, também percebo e respeito a que se escolheu. Percebo a necessidade de transmitir essa segurança ao país: que a democracia não fecha as portas nunca, mesmo quando ameaças assustadoras pairam sobre as nossas cabeças. Acho bonito e acho nobre. Não consigo decidir que acho a melhor, mas ainda bem que podemos falar sobre o assunto.
Foi isso que abril nos trouxe: a liberdade para podermos falar sobre o assunto, para ter opinião, para concordar ou discordar e dizê-lo.
Chama-se democracia e a Portugal chegou na tarde do dia 25 de abril, faz 46 anos. 

Há dias ouvi umas senhoras, já com certa idade, que alvitravam, a propósito dos interrogatórios que as forças de segurança faziam aos transeuntes no fim-de-semana da Páscoa, que parecia termos voltado aos tempos da ditadura. Fazer uma comparação destas, e com ligeireza, causa-me arrepios. Eu, que como se sabe não primo pela paciência, fiquei lixada e apeteceu-me dizer-lhes (mas com “F”).
Eu nasci em 1976, já Portugal era um país livre da ditadura. Não sei o que é viver sem liberdade, não sei o que é ter medo de dizer o que penso, não sei o que são unhas arrancadas, queimaduras de cigarro ou outros horrores. Não sei o que é viver na desconfiança e sobressalto, sem saber se aquele amigo, aquele vizinho, vai denunciar alguma atitude menos patriota da minha parte. Não sei o que são meninos da idade do meu filho a morrer na guerra ou a matar alguém.
Não sei o que é ficar privada de direitos individuais, da minha liberdade de expressão, não sei o que é o risco do lápis azul.
Mas sei que NÃO É isto.
Isto que nos estão a impor (e que nem devia ser preciso pedir) chama-se respeito, sentido cívico, nobreza de sentimentos, defesa dos mais frágeis, altruísmo,apoio aos que lutam, serviço pelo todo.
Isto que nós temos, e que para os mais esquecidos nunca é demais lembrar que nasceu de uma luta árdua, é uma democracia forte e inequívoca que permite ao governo privar os cidadãos parcial e temporariamente da sua liberdade, sem que isso seja tido como uma ameaça aos seus direitos. Hoje, podemos receber ordens deste governo que elegemos sem medo, porque acreditamos que ele trabalha para nós e não o contrário. Que ele existe para nos defender e não para nos oprimir.

Isto, meus amigos, é o que abril nos deixou. 



Isto, é "o Estado a que chegámos" 💚

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