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A mostrar mensagens de julho, 2020

4ª Alucinação – Regresso

Fotos  instagram.com/the.tiagolourenco “AHA! Estou-te a ver! Ainda aí continuas? Santo Deus! Que miséria! Que estu pi dez! Levanta-te! Agora! Estás a ouvir? Corpo, ouves-me?” Se calhar não. Será que não? Continua ali, estendido no chão. Está escuro à sua volta Ele enroscou-se e os braços abraçam os joelhos, na ilusão de um abraço que acabou por não chegar. “Corpo… Corpo… CORPO!!” Não reage, não responde, creio mesmo que não ouve. Alheou-se. Pobre corpo abandonado. “Perdoa-me. Eu não te podia levar. Tu estás gasto e és pesado, só ias atrapalhar” Mas ele, incapaz de ouvir, entregou-se à solidão. Libertou-se da razão e des pi u-se do sentir. Agora é aquilo que ali se vê: Um corpo só, enroscado, olhos abertos, vidrados, fixos num sonho que nunca ninguém sonhou. São olhos que não choram. São lábios que não se movem pois de outros lábios beijaram as lágrimas que já não correm. E eu insisto “Corpo, vens? Eu sei que te

3.ª Alucinação - Abandono

Fotos  instagram.com/the.tiagolourenco Estou cansada desse corpo sem vontade, que escorreu pelo rio, abandonado. Liberto-me e evaporo. Sou partículas de vapor que se perdem, libertas da dor, cada uma para seu lado. fragmentos, num céu cinzento, como de humidade que se cola à pele. A pele do corpo? Daquele que abandonei? Que desconsiderei? Não o quero. Não me serve. Ele que me trai, que me quer impor vontades quando já não tenho nenhuma. Sou um espectro que evapora, que se divide pelo espaço. Partículas. Sem peso e sem força. Sem gravidade, flutuo. Liberdade. Já nada me prende ao chão. O corpo ficou para trás. Era uma farsa, uma sátira. Uma comédia! Mas que bem representada. Sou fragmentos, que riem à gargalhada. Sim! É de ti que me rio corpo inútil! Que pensavas? Que vencias? Que lutavas? Quanta ingenuidade! Mereces, por isso, a maldade. Que falta de consideração, quereres sentir sem razão! Agora, vê bem

2.ª Alucinação – Renúncia

fotos  instagram.com/the.tiagolourenco Com a cara colada ao chão, oiço água a pingar. Sinto-a vibrar nas profundezas. Vai correndo, como corre. Para onde? Não sei, mas também vou. Dissolvo-me e acompanho-a. Sigo livremente escorrendo uma existência. A terra retém pedaços do que eu sou. Fragmentos absorvidos na passagem. Misturam-se, decompõem-se, até um inseto os devorar, algo os aniquilar. E eu serei cada vez menos, ainda bem, à medida que vou escorrendo pela vida, num rio sem leito, num rio sem margens, num rio sem curso. Terá foz? Ou somos nós? Ninguém corre para sempre, indefinidamente. Ou sim? De mim? Assim? Não sei e não importa, porque o rio que me comporta, de mim fica com pedaços. Absorve-me. Um dia nada restará para correr. Será um rio seco no seu leito. Desfeito. Grande feito. E uma história para contar. De encantar? Que piada! E deveras engraçada. Já não corres? Rio que morres? Não oiço a água

1ª Alucinação – Pausa

fotos instagram.com/the.tiagolourenco Sou um movimento a abrandar. Um pêndulo em fim de embalo, um baloiço sem criança, uma pausa na esperança. Aguardo, sem saber o quê. Paro. Escuto o silêncio. O ar pastoso entra-me pelas narinas e cola-me a língua ao céu da boca. Fecho os olhos. Dobro os joelhos, baixo-me lentamente até sentir o chão nas palmas das mãos. Tudo em redor se encerra e estou só. O silencio esmaga-me a face contra o pavimento até doer e irromper de mim um murmúrio, um gemido abafado, magoado. Abro os braços e fico. Quase não respiro, nem suspiro. Se me viro sei que me firo e não quero. Paro. O ar pesa contra as costelas. Suplanta-me, aperta-me a garganta. Quase não respiro nem suspiro. Apenas o vento, que condoído do meu tormento sopra uma rajada violenta e fria. Como uma estalada, bem merecida e bem dada. No ar rarefeito, o corpo estremece ansioso. Treme e uma chama ameaça acender-se.

Sorriso

Tenho aquele sorriso entalado na garganta. É o teu sorriso, no alquebrar da voz, nas últimas notas da canção. É o sorriso do “até já”. Do “eu volto”. Do “não desistas”. É o sorriso imposto pela distância rígida que não quebramos e que fingimos que não nos dói. Num momento de fraqueza pego-te a mão e tu fechas as tuas em redor e ficamos assim, a dizer naquele aperto, tudo o resto que nos falta. Nestes tempos de sentimentos arrancados com brusquidão, de palavras caladas para não magoar e de mágoas guardadas fundo, é o sorriso que me trai.  Não sei enganar o sorriso. Nem o meu, nem o teu. Muito menos o sorriso dorido que me vive na garganta. Promete-me apenas isto: Nunca deixes de me sorrir.