Avançar para o conteúdo principal

3.ª Alucinação - Abandono






Estou cansada desse corpo sem vontade,
que escorreu pelo rio, abandonado.
Liberto-me e evaporo.
Sou partículas de vapor que se perdem,
libertas da dor,
cada uma para seu lado.
fragmentos, num céu cinzento,
como de humidade que se cola à pele.
A pele do corpo?
Daquele que abandonei?
Que desconsiderei?
Não o quero.
Não me serve.
Ele que me trai,
que me quer impor vontades quando já não tenho nenhuma.
Sou um espectro que evapora,
que se divide pelo espaço.
Partículas.
Sem peso e sem força.
Sem gravidade, flutuo.
Liberdade.
Já nada me prende ao chão.
O corpo ficou para trás.
Era uma farsa, uma sátira.
Uma comédia!
Mas que bem representada.
Sou fragmentos,
que riem à gargalhada.
Sim! É de ti que me rio corpo inútil!
Que pensavas?
Que vencias? Que lutavas?
Quanta ingenuidade!
Mereces, por isso, a maldade.
Que falta de consideração,
quereres sentir sem razão!
Agora, vê bem, caíste.
Estás estatelado no chão.
Esperavas de mim compaixão?
Ocorreu-te que eu não me ia libertar?
Soltei-me, evaporei.
Olho-te com escárnio, corpo que abandonei.
Eras fraco, não prestavas.
Ainda um dia me enganavas.
Vê bem do que me livrei.
Sou vapor,
ao abandono, sem dor.
Sou apenas água e luz,
num movimento sem prisão,
que algum contorno reduz a nada,
ou à imensidão
da ilusão.
Sem limites, sem fronteiras,
abandono o corpo estendido no chão.
Solidão.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Desculpa-me

  Pedes desculpa, mais uma vez. A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar. Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a miúda, rabugenta, pelo pulso. Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou. Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o ranho à blusa. - Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena, duvida. Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados. Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca da camisola. O recado da educadora flutua através de mim. Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café. Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na cintura. Cheiras a dia lavado. - Vai ser diferente, agora. Quero c...

Manifesto

  Esta noite tive um sonho demasiado lucido. Se acreditasse em fenómenos paranormais, diria que viajei num universo paralelo. A sala era luminosa. As pessoas recostavam-se, dispostas em hemiciclo. O orador falava, embalando a assistência. - O coração é um músculo cuja função é bombear sangue e provocar mortes súbitas. Para uma morte tardia, não devemos subverter este princípio. As palavras flutuavam, como uma melodia, conduzidas pela brisa morna. - Os indivíduos, ao atribuir ao musculo estímulos para os quais não foi concebido, como amar, sobrecarregam-no e acabam por danificá-lo. O amor tem propriedades corrosivas que provocam lesões irreparáveis nos tecidos do coração e que, transportadas pelo sangue, se espalham às outras partes do corpo. As pessoas ouviam e anuíam, perante aquela explicação cabal para as dores que sentiam. As pestanas carregavam-se de lágrimas. As chagas que os afligiam mais não eram, afinal, que o resultado do uso inadequado do coração. - Como qu...

Mudanças

  Vais ter de mudar de casa, lamento, já não cabes aqui. Empacotei as tuas coisas. Quero que saias já. Fiz a partilha sozinha porque a casa é minha. Levas as noites quentes, o meu sorriso e a televisão. Ah, e levas também os orgasmos. Metade eram falsos. Com as madrugadas fico eu. São as horas em que escrevo melhor. Também guardo o cobertor e o gato. Não precisas de confortos. A culpa, deitei fora. Não tapava nem frinchas. Pelo meio das arrumações, encontrei um bilhete, pingado de café, “compra-me tampões. SEM APLICADOR!”, com um coração no canto, a piscar o olho. Rio-me. Sobra de nós uma hemorragia inútil. Abro uma garrafa de tinto e sento-me, no chão da cozinha, a brindar aos infortúnios. Tens à porta a mala e dois caixotes. Levas o bengaleiro, detesto os casacos pendurados na entrada. E os amigos, com quais ficas? Que sejam eles a escolher. Por mim, dois ou três bastam. Não toques à campainha. Vê lá se, ao menos desta vez, trazes a chave contigo. Deitei a tua escov...