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Pessoas de vidro


Há pessoas que são feitas de vidro laminado fosco. Daquele vidro que não quebra com a pancada e que não deixa ver para dentro.
São pessoas que ora parecem frias, ora parecem luminosas, em que a chuva quando bate escorre em lágrimas grossas, como soluços silenciosos. Quando chove, viram a cara para o céu e, de lábios entreabertos, deixam as gotas geladas lavar-lhes a alma.

São pessoas caladas, de superfícies planas e emoções resguardadas, que resistem aos ventos que as fustigam como canas altas num canavial, vergando e ondulando, sem quebrar. São pessoas que deixam o sol entrar com cautela, em reflexos medidos e calculados, que estendem braços e pernas nuas para se deixar amornar, apaziguar.

São pessoas com medos, mas que não se dão a fragilidades. Assustam-se, encolhem-se um pouco, mas não fogem. Ocultam-se na semiobscuridade de um pequeno mundo translucido, onde a luz só entra devagar e onde, só com muita relutância deixarão entrar alguém. 

São pessoas de tranquilidade ensaiada ao espelho, de gestos controlados, de sorrisos genuínos a enganar os gritos fortes que quase nunca se chegam a ouvir. Que moem e remoem sentimentos grandes demais para dizer em voz alta e relegam para o silêncio tudo o que pode ser dito apenas com o olhar.

São pessoas com olhos cheios de histórias e a boca cheia de algodão que as impede de as contar. Com tantas letras dentro, tantas frases inacabadas, tantas ideias por explorar, deixam-se levar pela corrente e deixam-se afogar em águas de pensamentos revoltos. Das palavras guardam o sabor e preferem habitar-se por silêncios.

São pessoas extenuantes, que se cansam a si próprias na ânsia de boicotar as certezas, rendidas à tentação de jogar às dúvidas. Puxam o próprio tapete para sentir o chão escorregar e para, depois do susto, perceberem com gozo que caíram de pé.

São pessoas que colocam o limite no céu, ou no fim da tarde de uma quinta-feira qualquer, adormecem por entre angústias e, no dia seguinte, acordam prontas para começar tudo outra vez. Primeiro porque não acreditam em limites e depois porque podia ser quinta-feira ou outro dia qualquer.

Não são pessoas melhores nem piores do que as outras pessoas.
São apenas assim.

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