Todo o país aguarda por 6ª feira para saber o que vai ser
determinado para o, já antecipado, prolongamento do Estado de Emergência.
Claro que não encaramos todos da mesma forma o confinamento a
que esse estado obriga e, claro que não estamos todos a passar pelas mesmas
dificuldades. Evidentemente há situações muito mais dramáticas do que outras. Mas
escrever, como eu li hoje, que há um grupo que “ainda tem recursos financeiros
para se manter parado. Por isso, a "economia" fica em segundo plano. A
quarentena é cómoda, usam o tempo para refletir, ver filmes, descansar” e outro
grupo que tem “empregos, casas, negócios, tudo em risco eminente. Por isso,
prefere enfrentar o risco do vírus e voltar ao trabalho”, acrescentando que “São
interesses e dores completamente diferentes” e rematando com esta pérola “Não
estamos todos no mesmo barco, estamos todos na mesma tempestade, mas em barcos
diferentes. Uns estão em iates, outros em botes, outros em canoas que já estão
afundando”, deixa-me lixada com “F” grande.
Vou já esclarecer que é para não ludibriar ninguém: eu não
tenho o meu ordenado em risco, estou a conseguir trabalhar a partir de casa e
não tenho filhos pequenos aos berros a reclamar a minha atenção. Sou, portanto,
uma privilegiada. Sou também bastante cética e tenho um problema de controlo;
Pode-se dizer que sou control-freak. Posto isso, na minha modesta opinião (que
de cientifica não tem nada, mas se o Paulo Portas pode, eu também posso) esta
coisa ainda não está controlada.
O povo português, apesar das muitas qualidades, tem simultaneamente
a crença de que o mal acontece em maior escala nos países vizinhos. Foi a
História que nos habituou mal. Dizem alguns entendidos, esses de facto com o
necessário canudo, que desta vez não é bem assim.
Daí a minha enorme renitência em voltar à vida normal e o meu
desejo sincero de que se prolongue o isolamento.
Se pensaria de forma diferente caso estivesse sem trabalhar,
sem receber, com a família em risco? Não sei.
O que sei é que tenho à minha volta muita gente em
dificuldades várias, financeiras, logísticas, profissionais. Gente que se
coloca diariamente em risco para fazer as coisas continuarem a funcionar, que
vai tratar doentes, vender a fruta, levar refeições a quem precisa. Gente com
negócios presos por arames, a aguentar estoicamente esta porcaria e a fazer o
melhor para encontrar ânimo para si e para dar aos outros.
O que sei, também, é que tenho um pai que é grupo de alto
risco. Não tem só mais de 70 anos, nem uma bronquite asmática, tem um pulmão transplantado
e é imunossuprimido. Ainda assim, 3 vezes por semana tem de ir ao hospital
fazer hemodiálise e deixa-nos a todos com o coração nas mãos. Conheço de cor os
caminhos daquele hospital (e de outros) e sei o esforço quase sobre-humano que
está a ser feito para conseguir que pessoas como o meu pai consigam continuar a
ir aos tratamentos com a segurança necessária. Isso só é possível enquanto o
número de casos de doentes Covid-19 a chegar aos hospitais estiver
relativamente controlado.
Portanto, não me venham com merdas de iates.
Também sei que tenho um filho que devia terminar o curso
daqui a uns meses e agora não sabemos se, e como, isso vai acontecer, e a que
despesas extra vai obrigar. Tenho a família longe, a precisar tantas vezes do
meu apoio e eu sem poder chegar, tenho uma filha que não vejo há quase dois meses.
Queria imenso, apesar do medo do vírus, meter-me no comboio e ir dar-lhes um
abraço. Só que, neste momento, o bem comum sobrepõe-se ao bem individual. Não
porque é mais bonito ou altruísta, mas porque é necessário. Não há economia que
aguente um país com as pessoas a caírem que nem tordos. Nem há dinheiro para
pagar todas as vidas que se podem comprometer. É duro? É cruel? É. Mas é real. Não
me venham com merdas de iates.
Cada um de nós, dentro das suas possibilidades, deve fazer a
sua parte: pagar à empregada que não pode vir trabalhar, pagar o ginásio, pagar
as propinas, ir fazer compras e levar refeições a quem precisa, continuar a
trabalhar com honestidade e dedicação; tudo o que possa minimizar o impacto
negativo desta suspensão sem precedentes.
Não somos todos iguais, não temos todos as mesmas possibilidades.
Alguns estão sem salário, alguns estão a passar fome, outros estão tão sozinhos
que não sabem se é do vírus ou da solidão que têm mais medo. Mais do que entrar
em discussões idiotas sobre a dimensão do barco em que navegamos, importa fazer
alguma coisa por aqueles que realmente precisam. Não serve de nada estar entre
os privilegiados se não pudermos gozar desse privilégio para dar a quem tem
menos. E todos podemos fazer alguma coisa, se deixarmos de olhar para o nosso
umbigo e deixarmos as invejas, os rancores e as politiquices para outro tempo.
(quiçá até descobrimos que podemos viver sem essas tretas)
O vírus não escolhe ricos ou pobres, desempregados ou
preguiçosos, analfabetos ou escritores. Vai tocar a todos. Nesse aspeto é bastante democrático e veio nivelar muita discrepância, sobretudo no que respeita à
fragilidade da vida humana.
Desiludam-se os que acham que já passou a tempestade. Há gente
a ir ao fundo? Estendamos a mão para os trazer à tona. Temos um barco maior?
Apertemo-nos para dar lugar a mais gente. Há canoas danificadas? Peguemos nas
ferramentas que temos para ajudar a concertar.
O problema, meus queridos, nunca é o tamanho do barco em que
se navega, é se estamos dispostos a usá-lo para salvar vidas ou para servir de
embarcação de recreio.
Deixem lá a merda dos iates.
👋👋👋
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