Nos primeiros dias de isolamento acontecia-me com frequência.
Cheguei a perguntar ao meu filho, na cozinha, se isto era mesmo real. Agora já
não, mas continuo a ter uma certa sensação de irrealidade.
Ontem à tarde estive a rever o Outbreak, com o Dustin Hoffman
e Morgan Freeman (entre outros, no excelente elenco) e na primeira, vá lá, meia
hora de filme, era estranhamente real. Depois transforma-se na típica coboiada
americana e o meu interesse foi reduzindo até à semi sonolência.
A questão é que, atualmente, a realidade supera largamente
estes cenários de ficção e subitamente reparamos em tudo o que está errado no
filme porque nós estamos a vivê-lo e sabemos que não acontece assim.
De repente passámos de espectadores a protagonistas num dos
grandes dramas da História da humanidade.
Esta noite sonhei muito. No meu sonho, eu cheguei ao
ginásio para treinar e o quadro estava tão longe que eu não conseguia ler o
treino e havia gente e material espalhado por todo o lado e eu estava a ficar
enervada (a desorganização enerva-me) e ia começar a protestar, mas a sala
transformou-se em auditório e ia começar uma palestra com o Dr. APM, mediada
pelo Salgueiro das dicas. Pelo meio passeava-se um veiculo todo terreno, numa
espécie de cenário de carnaval, e depois chegava a minha família para assistir
à Maria a cantar Mozart nas festas dos Dias da Musica e tudo era muito
alucinante e confuso, mas ninguém falava de Covid-19 nem de distanciamento Social.
Eu não estava preocupada com desinfeções e excessos de proximidade e a única
coisa que me angustiava era a falta de disciplina daquela gente toda que
parecia louca e desordenada.
Apesar de desfragmentado, era um sonho que só tinha episódios
que até há pouco tempo eram banais. E agora, já não...
Parece que a realidade e a ficção se inverteram. Às vezes
tenho a tentação de mergulhar neste filme que nos tornou protagonistas sem nos
consultar e mandar às urtigas as rotinas e princípios daquele outro eu que era
real. Aquele eu que se preocupa com o que come, com o exercício que faz, com os
livros que lê, com não ver porcarias na televisão, com manter a casa arrumada,
com ter o trabalho sempre em dia, com acordar sempre cedo de manhã e nunca
passar o dia em pijama. Às vezes apetece-me entrar na pele desta personagem e
ficar a pastar no sofá entre quadrados de chocolate, amêndoas e copos de vinho
tinto, a assistir a uma telenovela ou a uma comédia romântica de fraca
qualidade, acordar para trabalhar quase à hora da reunião de controle e entrar
online com uma sweat manhosa por cima do pijama. Podia ignorar a depilação, não
pintar as unhas e deixar pilhas de roupa amontoarem-se sem as passar a ferro. E
podia deixar os processos de construção acumularem-se na minha “ordem do dia”
porque também não faz mal nenhum à construção civil abrandar um bocadinho.
Mas claro, isso não sou eu. E assim como chegam, esses
impulsos de boicote à minha personalidade, vão embora.
Na hora da refeição lá vou buscar a balança para pesar proteínas
e hidratos, deixo o vinho para sábado, faço burpees
com gosto (já disse aqui que estou a aprender a gostar de correr?), faço por
manter a média de processos analisados por semana, limpo a casa e organizo
armários e prateleiras, passo a ferro e vejo menos televisão do que em tempos
normais.
Este isolamento já está a levar tanto, não vai levar
também a minha essência nem o esforço e dedicação com que trabalhei nas
várias vertentes da minha vida antes desta pandemia. Quando chegar a junho, ou
mais tarde se entretanto ainda não estiver restabelecida a normalidade nas
consultas, o adipómetro não vai dizer que, apesar de tudo o que o vírus tirou,
veio devolver-me pregas de massa gorda. Era o que faltava!
Apesar da sensação de irrealidade que nos acomete às vezes, é preciso manter os pés na terra, o sorriso nos lábios e a Fé no futuro.
A ver se nos levantamos bem, quando acabar este “sonho
esquisito”.
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