Pedes desculpa, mais uma vez.
A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os
braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar.
Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a
miúda, rabugenta, pelo pulso.
Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou.
Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o
ranho à blusa.
- Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena,
duvida.
Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe
o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a
no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados.
Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca
da camisola. O recado da educadora flutua através de mim.
Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café.
Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na
cintura. Cheiras a dia lavado.
- Vai ser diferente, agora.
Quero crer-te, mas o café sabe-me a desalento. A pele arde, onde
a tua mão pousou. Sais.
Levo o dia a acertar-me à diferença. Dou banho à miúda.
Deito-a e rogo-lhe que adormeça. Lavo a gordura do cabelo. Procuro, entre os
pratos, os que não estão lascados. Porque pediste desculpa.
Chegas. Dou dois segundos às ilusões, até que, com os nós dos
dedos me desacertas. O copo, que te estendia, voa e estilhaça-se no chão.
Afinal tinhas razão, é diferente, agora. A dor tranquila. A bochecha
no azulejo. O líquido morno a correr entre as pernas.
A miúda, na ombreira da porta, esmaga a boneca nos braços.
- Desculpa. – Digo eu, desta vez, estendendo a mão para os
pezinhos descalços. – Não me soube acertar por ti.
Enrosco-me no cansaço e abandono-a.
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