Avançar para o conteúdo principal

Reflexo no espelho



Acordou e estava triste.
Como estava triste, sorriu.

Talvez precisasse de lágrimas, mas não as conseguiu encontrar e, por isso, sorriu.
Olhou-se ao espelho, a barba por fazer, a sombra pisada por baixo dos olhos, a expressão digna, de quem sofre sem doer.

A dor tinha-o deixado, já não lhe deformava a expressão. A boca não se contorcia em desespero, quando tentava uma gargalhada.

Era um homem gasto. Tinha amado, tinha lutado, tinha perdido. Fora enganado pelo destino. À sua frente, no espelho, olhava-o um sábio derrotado. Tanta coisa tinha aprendido. Tanta coisa tinha esquecido depois.
Pensou que não ia aguentar a dor, o abandono, a solidão.
Porem, quando hoje acordou estava triste. Apenas triste. Já não doía.

No espelho, através das pestanas espessas, o olhar baço devolvia-lhe a expressão de quem já aprendeu mais do que devia. Olha-se como a observar um estranho, com a objetividade que quem vê um filme que deixou de ser o seu. Passou de protagonista a espectador e sorri perante a inevitabilidade da história. Tão banal a sua história, tão irremediavelmente previsível.

Ri agora da sua própria surpresa. Como foi que se deixou surpreender?
No olhar, tem um sem fim de incredulidade, quando se dirige ao reflexo – “Foste ingénuo, sabes?”

Entre ele e o reflexo perdem-se as lágrimas. No vácuo daquele momento, escorregam sobre a superfície inatingível. Na lâmina que os separa fica apenas um rasto húmido e frio.

O espelho devolve-lhe um sorriso sereno e trágico.
No olhar refletido cintilam lágrimas que ninguém vê.
Um dia o espelho quebra-se e elas saltam em catadupa. Então, ele há de rir, com paixão e com vontade.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordin...

Desculpa-me

  Pedes desculpa, mais uma vez. A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar. Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a miúda, rabugenta, pelo pulso. Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou. Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o ranho à blusa. - Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena, duvida. Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados. Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca da camisola. O recado da educadora flutua através de mim. Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café. Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na cintura. Cheiras a dia lavado. - Vai ser diferente, agora. Quero c...

Virada do avesso

  Às vezes o dia vira-me do avesso. Ou as pessoas. Ou o tempo. Às vezes é porque está sol e vento. Ou chuva e frio. Ou porque anoitece demasiado cedo. Ou porque as horas não me chegam. Ou porque o tempo não passa. Fico indecisa se me apetece gritar ou afundar-me no sofá debaixo de um cobertor. Tenho uma vontade imensa de comer porcarias. Não como para não me irritar ainda mais com a balança. Bebo café demais. Fico elétrica para vencer a letargia. Quero praia, mas seria incapaz de tirar a roupa para mergulhar. Tudo me irrita. Sei que fico difícil de aturar. Como quando tenho sono ou fome. Sei que quando estou assim, acaba por levar quem não tem culpa. E, por esse motivo, os anos ensinaram-me a tentar ficar calada. Teclo respostas azedas a e-mails estúpidos. Apago e rescrevo, com secura diplomática. Ignoro mensagens e chamadas. Se não querem uma resposta torta, não falem comigo. Desculpem lá, mas “jogo de cintura” não faz o meu género. Nem gente com a mania de que é don...