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Manifesto

 


Esta noite tive um sonho demasiado lucido. Se acreditasse em fenómenos paranormais, diria que viajei num universo paralelo.

A sala era luminosa. As pessoas recostavam-se, dispostas em hemiciclo. O orador falava, embalando a assistência.

- O coração é um músculo cuja função é bombear sangue e provocar mortes súbitas. Para uma morte tardia, não devemos subverter este princípio.

As palavras flutuavam, como uma melodia, conduzidas pela brisa morna.

- Os indivíduos, ao atribuir ao musculo estímulos para os quais não foi concebido, como amar, sobrecarregam-no e acabam por danificá-lo. O amor tem propriedades corrosivas que provocam lesões irreparáveis nos tecidos do coração e que, transportadas pelo sangue, se espalham às outras partes do corpo.

As pessoas ouviam e anuíam, perante aquela explicação cabal para as dores que sentiam. As pestanas carregavam-se de lágrimas. As chagas que os afligiam mais não eram, afinal, que o resultado do uso inadequado do coração.

- Como qualquer substância psicotrópica, o amor induz um estado de satisfação que gera dependência e desejo reiterado de retorno ao prazer. Com o tempo, instala-se o vício, julgando-se o indivíduo incapaz de prosseguir sem doses de amor. O consumo dá-se em doses regulares, que podem levar a overdose e, inclusivamente, à morte.

A multidão gemia, ciente do abismo.

- No entanto, se interrompido numa fase precoce, ainda que de forma súbita, os danos neurológicos resultantes do consumo de amor são, normalmente, reversíveis.

Um intenso alívio percorria-os.

- Assim, os participantes não devem recear assinar a declaração prescindindo de todo e qualquer uso de amor. Encarem este programa como uma experiência libertadora.

Calou-se.

Um a um, homens e mulheres erguiam-se. Alguns, cabisbaixos, abandonavam a sala. A maioria, porém, dirigia-se ao local onde, assinando o manifesto contra o amor, conquistava a liberdade.

E eu, descrente do paranormal, do amor acordei agnóstica.

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