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Ódio mortal

 

 


Desvio o olhar do jornal pousado na mesa do café. Não me surpreende a notícia. Apesar disso, as palavras ferem-me como uma lâmina acutilante e vergo-me perante a realidade impressa. O estômago contrai-se. Sinto a acidez subir à base da língua. Releio o título e forço a vista em cada detalhe da fotografia.

Deixo algumas moedas sobre o tampo e caminho ao longo da linha de areia, contemplando o mar cinzento a desfazer-se em espuma. O tumulto da rebentação ruge-me no peito, a pulsação acelera, o ritmo da passada aumenta. Corro. O vento assobia-me nos ouvidos e forma-se uma gota de suor que desliza entre os seios. O tecido molhado da t-shirt cola-se às costas.

Transpiro ódio. Um sentimento visceral que suplanta o amor. Ódio a transbordar volúpia, com uma intensidade carnal. Odeio-te com o mesmo deleite com que te amei. O desejo aceso por torturas perversas que me enchem o pensamento.

Paro e deixo-me cair de joelhos na areia molhada, a mão a amarfanhar o papel, que ainda trago sem me aperceber, com o teu nome a dar crédito ao artigo. A fotografia a zombar de mim. A contragosto, deixo emergir memórias. Outras palavras, olhares intensos, a primeira vez que escrevemos juntos. Perco-me momentaneamente na fantasia, invento conversas, molha-me os lábios o beijo que não me deste e é nesse instante que viro o rumo à história. Transformo-a numa epopeia venenosa e sublime. Elevo o ódio a um patamar de dor que se desfaz numa hemorragia fatal, sem possível reanimação. Abandono-te num coma perturbado, desligo-te a máquina e deixo-te a morrer devagar, exangue, lutando pelo ar que me roubaste. Sem pena e sem remorso, faço 24 horas de luto e, por fim, enterro-te nas trevas de um amor reduzido a aborto espontâneo.

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