Os candeeiros da rua estão acesos e nuvens carregadas prometem tempestade. O edifício está quase vazio. Apenas Jorge, sentado à secretária, ouve a mulher à sua frente, com uma expressão condescendente. Faz rabiscos no bloco quadriculado, enquanto a pressão nas têmporas lhe recorda os excessos da noite anterior. A mulher tem uma equimose abaixo do olho esquerdo e um corte no lábio. A voz é fatigada, vazia de emoções. Na sobrancelha vê-se uma falha, fruto de cicatriz antiga. A história é idêntica a centenas de outras que já ouviu.
Anos atrás, quando integrara a divisão de investigação criminal da polícia de segurança pública, trazia o coração transbordante dos princípios e ilusões próprios da juventude. Alto, bem constituído, com olhos verdes brilhantes, almejava ser o campeão das donzelas que o mundo maltratava.
A inércia do sistema e a burocracia foram-lhe apagando o brilho dos olhos. O whisky apaziguou-lhe a ousadia. Com crescente rancor, foi descobrindo que as delicadas donzelas eram quase sempre mulheres amarrotadas pela vida, desprovidas do encanto das princesas que ele jurara defender.
Aos poucos foi compreendendo os companheiros que as maltratavam. Abominou o descuido delas, as nódoas nas camisolas, os cabelos oleosos, a sombra do buço por tirar. Numa completa inversão de valores, começou a detestá-las, às mulheres, e aos seus testemunhos patéticos. Odiou a sua submissão. Repugnou-o a fraqueza com que consentiam abusos e maus tratos. Culpou-as pelo fracasso de uma carreira que imaginara auspiciosa.
Escutando as palavras na voz monocórdica da mulher à sua frente, não consegue lembrar-se porque é que outrora desejara salvá-la.
- Acho que temos o suficiente – diz-lhe, sem levantar os olhos. Sente nojo.
Ela ergue-se, a resignação colada ao corpo, acatando as palavras dele como uma ordem. Sai e dirige-se para o elevador.
A porta está a fechar-se quando uma mão a trava. Vendo entrar o agente que recolhera o seu depoimento, a mulher faz um ligeiro aceno de cabeça e, instintivamente, recua para o fundo do compartimento. O elevador inicia a descida e imobiliza-se segundos depois. Ele premira o botão de paragem.
O coração da mulher bate descompassado vendo-o aproximar-se. Sente a mão áspera no pescoço, esmagando-a contra a parede. Debate-se. Os pulmões doem com a ausência de ar. Um fio de urina escorrer-lhe entre as coxas e as pálpebras cerram-se ao brilho daqueles olhos verdes.
As luzes da rua já estarão apagadas quando encontrarem o corpo frio.
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