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Crónica de uma violência anunciada - 1


Laura olha a mulher encolhida na cadeira à sua frente. Observa-lhe o pulso negro.  Ouve-a com o mesmo desinteresse de quem folheia uma revista gasta, na sala de espera.

- Ele não queria magoar-me. – explica ela - Estava só a segurar-me. Eu é que fico marcada com muita facilidade.

Laura está cansada. Nota as raízes oleosas do cabelo da mulher, o risco a mostrar a falta de tinta. Não consegue evitar uma ponta de desdém. Entende com repulsa do marido. Pesa-lhe a vergonha por esse pensamento, mas não tanto que a arranque à letargia.

- Já pensou deixá-lo? – pergunta, sem verdadeiro interesse.

A outra arregala os olhos. Responde-lhe com a voz vibrante de incredulidade.

- O meu marido ama-me, doutora! Não fale do que não sabe! Dê-me a receita, por favor, que tenho pressa.

Escreve a prescrição. Está cansada. Quer acabar o dia e ir para casa. Pega na folha que sai da impressora e estende-a à mulher.

- Aqui tem. Não se engane na dose. Precisa de mais alguma coisa?

A mulher fita-a e sai, murmurando um agradecimento.

Laura arruma o gabinete. A caminho de casa tem de passar pela lavandaria. A Carolina tem de estudar para o teste de história. O Miguel portou-se mal na escola. O Eduardo chegará tarde, novamente. E ainda falta o jantar.

Conduz pelo trânsito, no crepúsculo, lembrando-se como costumava desfrutar aquele trajeto, sem pressas. Ligava o rádio e deixava-se serenar pelas luzes dos faróis a misturarem-se com os restos de sol a afundar no rio.

Revivia momentos do dia, antecipava outros. Tinha sonhos, expectativas, ilusões. Pensava, com ternura, nas histórias de alguns pacientes. Com angústia, noutras. Prometia que encontraria soluções, que seria uma ponte nas suas vidas. Onde perdeu essa empatia? Sucumbiu à fadiga dos dias?

Laura está muito cansada. Se guia devagar, é porque quer adiar o momento da chegada ao rebuliço da sua casa. Decide encomendar frango de churrasco.

Roda a chave, inspira fundo e, inventando um sorriso, chama pelos filhos.

Não volta a pensar na mulher do pulso negro.

Três dias depois, ao jantar, quando o noticiário mostra a mulher morta na praia, o garfo imobiliza-se a caminho da boca. Dão conta que na areia, caídas a seu lado, estavam duas caixas de comprimidos vazias.

Eduardo ainda não chegou. Laura deita os filhos e senta-se no sofá, com o copo entre as mãos trémulas. Vê formar-se uma mancha escura onde o vinho pinga. Nasce-lhe no peito uma raiva pelo tecido imaculado. Esfrega a nódoa com o desprezo na ponta dos dedos. O desprezo que lhe escorre ácido por entre as pestanas. O desprezo por si própria.

Quando foi que começou a fazer do cansaço a sua absolvição?

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