Avançar para o conteúdo principal

Querer ou não querer, não é questão

 


Somos seres sociais. Os nossos quereres ou não quereres são fortemente condicionados por uma série de regras e convenções. E até convém que assim seja, partindo do pressuposto que vivemos em países democráticos, livres, onde a cada indivíduo é permitido fazer escolhas, dentro dos limites da lei e sem interferir com direitos alheios.

Hoje ouvi uma notícia curiosa, mas não inédita, sobre a polémica no Qatar relacionada com o facto de, numa prova do circuito mundial de voleibol de praia, as atletas serem obrigadas a jogar usando calças e camisola, em vez de bikini. São já várias as vozes a repudiar esta imposição. Aqui estamos no outro lado do espectro (ainda não no extremo a que corresponde a violação dos direitos humanos, mas a caminho), quando a sociedade impõe regras que atentam contra a liberdade individual. Não podemos, nem devemos, compactuar com situações limitadoras de direitos fundamentais como seja, neste caso, a perda do direito a envergar o equipamento oficial de determinada modalidade, pelo facto de ser mulher. Claro que este assunto dava pano para mangas (ou falta de pano) pois se olharmos por outro prisma, perguntamos porque é que há dimensões máximas para os referidos equipamentos e se não estamos perante uma descarada objetificação do corpo feminino. Mas, enfim, não era esse o assunto.

A questão é, até que ponto, por sermos seres que vivem em sociedade, temos de condicionar o nosso querer ou não querer individual.

(E não, não tem nada a ver com "então e obrigar-nos a usar máscaras? Então e não nos deixarem andar onde queremos?". A isso chama-se responsabilidade, civismo e respeito pelo próximo).

Cada um de nós tem os seus sonhos, as suas ambições, os seus desejos. Ou tem o direito de não os ter. O direito de, ocasionalmente, estar despojado de vontades, de simplesmente “não querer” coisa nenhuma, ou coisa determinada. Cada um de nós, enquanto individuo, tem a faculdade de escolher o que quer e não quer e dizê-lo. Não tem de viver de acordo com os quereres que, socialmente, familiarmente, culturalmente, se consideram adequados. Não tem sequer de querer o mesmo todos os dias. E pode não querer, só porque não lhe apetece. Sem ter de procurar justificações a toda a hora. 

Somos seres livres. Temos características que nos relacionam com os outros, que nos integram, que desenvolvem sentimentos e empatias. Mas somos únicos. E podemos. E devemos. E, se não queremos, não queremos. E pronto.

Pertencer não se sobrepõe a ser. Pertencemos a uma comunidade, a um grupo, a uma família, mas não deixamos de ser uma pessoa. Se a comunidade, grupo, ou família não o aceita e reconhece, então talvez seja altura de procurar pertenças noutro lado.

A primeira liberdade está no pensamento. Que é só nosso.


foto de @the.tiagolourenco

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Mudanças

  Vais ter de mudar de casa, lamento, já não cabes aqui. Empacotei as tuas coisas. Quero que saias já. Fiz a partilha sozinha porque a casa é minha. Levas as noites quentes, o meu sorriso e a televisão. Ah, e levas também os orgasmos. Metade eram falsos. Com as madrugadas fico eu. São as horas em que escrevo melhor. Também guardo o cobertor e o gato. Não precisas de confortos. A culpa, deitei fora. Não tapava nem frinchas. Pelo meio das arrumações, encontrei um bilhete, pingado de café, “compra-me tampões. SEM APLICADOR!”, com um coração no canto, a piscar o olho. Rio-me. Sobra de nós uma hemorragia inútil. Abro uma garrafa de tinto e sento-me, no chão da cozinha, a brindar aos infortúnios. Tens à porta a mala e dois caixotes. Levas o bengaleiro, detesto os casacos pendurados na entrada. E os amigos, com quais ficas? Que sejam eles a escolher. Por mim, dois ou três bastam. Não toques à campainha. Vê lá se, ao menos desta vez, trazes a chave contigo. Deitei a tua escova de

Desculpa-me

  Pedes desculpa, mais uma vez. A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar. Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a miúda, rabugenta, pelo pulso. Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou. Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o ranho à blusa. - Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena, duvida. Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados. Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca da camisola. O recado da educadora flutua através de mim. Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café. Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na cintura. Cheiras a dia lavado. - Vai ser diferente, agora. Quero crer-

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordinário