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Quando a vida não muda, só que nós.



Não somos iguais todos os dias. Não temos sempre os mesmos desejos, as mesmas ambições, ou as mesmas resignações.

Sem generalizar ou ter a presunção de saber o que pensam/sentem os outros. Sei de mim. E mesmo assim.

Há dias em que nada me apoquenta. Deixo a vida rolar e quase creio que tenho tudo o que quero, tudo o que preciso. Que, conserve-se esta vida pacata, e serei sempre feliz. Com alguns sobressaltos, mas quem não.

Isto acontece quando o bicho dentro de mim anda sonâmbulo. Amolecido, na modorra das tardes, quieto em manhãs preguiçosas.

E eu, que bem o conheço, aguardo. Sei que quando desperta vem cheio de ideias. É um bicho que, pese embora, durma pouco, sonha que se farta. Sonha acordado e fala dentro da minha cabeça (ocasionalmente em inglês) sobre as suas inspirações, nunca ponderando se o momento é oportuno. Para ele não são empecilhos as reuniões de trabalho, prazos para cumprir, funerais, ou horas de deitar. Não. Se tiver ideias para partilhar, cá vai disto. Mesmo que estapafúrdias, podem ser inseridas, sem qualquer pudor, a meio de um raciocínio sério como o cálculo de compensações urbanísticas ou a conversa com a sogra a propósito da última eucaristia.

A vida não muda, só que ele.

Num perfeito desprezo pelas conveniências, ele espreguiça-se, esbugalha os olhos e está pronto para o rebuliço.

Pode querer coisas diferentes todos os dias. Pode não saber o que quer. Pode não ser sempre coerente. Ou crente.

O bicho, no interior da cabeça, personifica um turbilhão de ideias, anseios de novidade, obstáculos e objetivos. E nem sempre é fácil de acompanhar esta maratona, com sprints pelo meio e eventuais reviravoltas.

Oscila emoções e humores como um ioiô. Catapulta-se do fundo do buraco para o céu em 3 segundos. Afunda-se com a mesma prontidão, basta acicatá-lo com a palavra certa. Tão depressa está pronto para a guerra, como para se enrolar sobre si próprio, fechado em concha, vedando-se ao exterior. Pode passar momentos imóvel, quase sem respirar. Morde quem lhe estender a mão. Destila veneno, silencioso. É tão amoroso quanto letal.

Impele-me para lutas que receio não querer. Proíbe-me a conformação, a lassidão, a autocomiseração e a desistência. Não se contenta. Finge. Com o dessossego latente, escondido em arrepios sob a pele escorregadia.

O bicho, amante de sobressaltos, empurra-me para a vida num descontentamento feliz. Inebria-me, faz-me amar o que tenho e, sem vergonha, faz-me desejar sempre mais.

Faz de mim uma espécie de montanha russa. De comboio em andamento, que não quer acordar no mesmo apeadeiro todos os dias. A rotina dá-me segurança e a ele, assusta-o. Eu faço planos e listas, previsões, antevisões e análises, mas ele enche-se de horror pela monotonia.

Quando o bicho acorda, fixa-me o olhar no horizonte e eu, fiel aos desejos dele, avanço às cegas, num rumo governado por vontades maiores que os dias, em passo impaciente. Somam-se ambições como blocos de lego coloridos e eu monto e desmonto, numa eterna desconstrução. Paredes coloridas, sem teto, sem portas.

 Mesmo quando a vida não muda. Só que eu.

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