Ora bem, então cá estamos nós a pensar que o confinamento é uma coisa terrível. E é. Mas de entre todo o espectro de cinzas, do branco ao negro, terrível pode ter graus muito distintos. Imaginemos o que é o confinamento para uma mulher que sofre de violência doméstica.
Até ao dia de hoje, em números oficiais, morreram 30 mulheres vítimas deste flagelo. 10 morreram desde agosto. A crónica que aqui deixo é fictícia. Porém, de acordo com o que ouvi esta manhã, tendo em conta os números, todos nós, estatisticamente e apesar de não sabermos, temos contacto com alguma mulher nesta situação. O drama (para além do drama maior) é que muitas vezes é um sofrimento guardado dentro das paredes das suas casas. Então, este é pelas mulheres que morreram, pelas que continuam a sofrer e por todos nós que devíamos fazer muito mais. Vamos estar mais abertos e mais atentos. Por elas.
Mariana está na banca da cozinha a lavar os pinceis. Recomeçara
a pintar durante o confinamento. Enche telas com cores magoadas, reflexos de angústia
e, ocasionalmente, numa linha fluída, um grito de socorro disfarçado. Mariana
não sabe quando a vida se transformou assim, quando foi que o amor deixou de o
ser. Apesar de dizer a si própria que ele ainda a ama. Que está só a passar uma
fase difícil. Mas a fase difícil arrasta-se. Mariana disfarça bem. Ninguém se apercebe.
Ninguém vê esta Mariana apavorada. Violentada.
Encolhe-se quando ouve a chave rodar na fechadura. Tremem-lhe
as mãos, deixa cair o frasco. Olha para os vidros no lava loiça, a água azul de
tinta, a manchar a pia branca. Tenta limpar rapidamente antes que ele veja. Não
lhe quer dar motivo. Porque é que é tão desastrada? Ele entra na cozinha. “já
fizeste merda, não foi?”. O cheiro a whisky fá-la virar o rosto. “desculpa…” e,
na pressa, sente um vidro entrar na mão quando o apanha. Ele repara e
aperta-lhe a mão. Ela grita de dor. O sangue escorre para a pia e mistura-se no
azul. “és tão estúpida” diz ele enquanto a empurra. Ela cambaleia, dobra-se. Sente
a mão pesada acertar-lhe acima da orelha esquerda. Os joelhos cedem, fica no
chão a arfar. Do quarto chega o choro de uma criança. Mariana sobressalta-se. Ergue
os olhos em súplica. “só faltava acordares a miúda” grita ele e dá-lhe um
pontapé com tanta força que a cabeça vai embater no armário. Fica caída no
chão, numa poça de urina e vómito. Dores atrozes nas costelas, na cabeça. Quer levantar-se,
ir atrás dele, quando ouve as passadas corredor fora, em direção ao quarto. Ergue-se
num esforço hercúleo, dá três passos e torna a tombar. Fica estendida, o olhar vítreo,
sem sentir o corpo e com o grito de terror sufocado na garganta. Da mão estendida
solta-se o vidro, enquanto o coração bate pela última vez.
Hoje, a Mariana, que ninguém viu, entra para as estatísticas.
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