Era nosso o mundo. Os lugares inóspitos, as florestas de faias com folhagem densa, o mar revolto, o sol a escaldar a pele e a chuva tagarela nas pedras da calçada. Todo o lugar que matizámos com os nossos tons, com as nossas imprecisões. Tornámos cada um possível, apesar dos contornos dúbios e das sombras equívocas.
Pegavas-me na mão e saltávamos entre as azedas, até ao ribeiro, os pés a escorregarem nos seixos húmidos. Ouvíamos piar o pássaro e tu contavas-me histórias dos outros dias.
Prometias que o mundo era nosso e eu acreditava em cada palavra que te saía da boca. Eras o meu dogma, a minha certeza absoluta.
Nas tardes solarengas de inverno, metíamo-nos no carro, uma cassete de fita gasta a tocar, eu ao volante, tu a desafinares os duetos, e íamos até à praia, levando livros e sandes de queijo fresco.
- Cantas tão mal! - dizia-te, e tu rias. Eras triste quando rias. Tinhas lágrimas na gargalhada. Devia ter desconfiado.
Às vezes, nos nossos passeios chovia e eu, diferente das outras mães, sem receio de resfriados, ensinava-te a ouvir a chuva, as palavras que ela dizia quando bailava no chão.
Era nosso o mundo. E o meu mundo eras tu.
Saíste de casa, madrugada fria, o vestido verde de organza a ondular. Gostava desse vestido, dava-te ar de menina. Na nossa falésia, com as rochas ásperas sob os pés descalços e o mar de chumbo lá em baixo, decidiste que o mundo já não te servia.
E também nisso eu cri. Dei ao mundo as tuas culpas. Para te fazer jus, tentei prova-lo. Deambulei por toda a parte, refazendo imagens, oprimida pelo definhar deste amor filho da puta.
Percorri todos os lugares. Na floresta de faias, corri com os galhos a rasgarem-me a pele, os ouvidos cheios do restolhar das folhas. Tropecei numa raiz e, de cara encostada à turfa, deixei o odor acre penetrar-me nas narinas. Na beira mar enterrei os pés em areia morna, com a espuma das ondas a enrolar-me tristezas nos tornozelos. Ergui a cara ao céu e, de lábios entreabertos, bebi chuvas ácidas.
Como um espectro, prossegui na demanda pelo lugar certo onde cavar a sepultura. Trago no bolso uma lâmina, mas falta-me lucidez e coragem. No meu âmago, desejo sangrar um rio sem leito que me dissolva na tua ausência.
Quando saltaste, não foi só a vida que deixaste para trás. Foi também a minha morte. Nem sequer sei como morrer agora. E estou certa de que não é entre os vivos que caminho.
Estou presa num labirinto de vazios, retornando ao epicentro da memória. Os meus braços são cotos inertes ao longo do corpo. Morreram de não te abraçar.
Se eu soubesse que gritando me ouvirias, furaria os tímpanos aos anjos que te carregam.
Todos os lugares são impossíveis.
E eu, sem saber existir nestes lugares, vivendo à custa da morte que me antecipaste, cheguei à hora da despedida e sou incapaz de morrer.
Comentários
Enviar um comentário