Porque temos uma casa luminosa, com cheirinho a assado ao domingo, lençóis de flanela no inverno, chá gelado no verão. Porque temos uma família que se preocupa e amigos que gostam de nós todos os dias. E uma manta sobre as pernas quando vemos televisão. Porque não sabemos o que é fome e às vezes, por engano, chamamos fome à gulodice. Nem sabemos o que é ter nas costas o frio gelado de quem se deita nos passeios. Porque temos dinheiro para o café, um almoço à beira mar, o maço de tabaco ou o livro novo que queremos tanto ler. Porque temos emprego, mesmo quando, ao domingo à noite, nos chateia tê-lo. E porque temos vizinhos que batem à porta a trazer aletria. E um gato e um cão. E daqui a uma semana ou duas pomos lenha na lareira, mais um cobertor na cama ou ligamos o aquecedor. E, quando dezembro chegar, teremos luzes de natal e presentes, sonhos e rabanadas. Mesmo em ano de pandemia.
Então, numa tarde de sábado, debruçados sobre
as panelas de arroz, tentando multiplicar os rissóis que escasseiam, alguém começa
a soluçar perante esta injustiça e, numa voz singela, diz “nós vivemos numa
bolha”.
E é verdade. Por ser tão verdade, esmaga-nos a
consciência destas palavras. Da injustiça. Da incoerência do mundo. Das assimetrias.
Da pobreza. Da falta de amor. Do abandono.
E nós, que vivemos numa bolha, às vezes passamos
pelas coisas à pressa, sem as ver e, sobretudo, sem as sentir. E não serve de
nada passarmos 4 ou 5 horas à volta das panelas a cozinhar para quem tem fome
se não tivermos humildade para parar, de colher a meio caminho, e reconhecer a
nossa sorte e a dor de quem não a tem.
Em tempos de pandemia, ficam por dar muitos abraços. E é pena.
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