Avançar para o conteúdo principal

Porque te gastas

 


Estão sentadas nos degraus das traseiras, com o olhar fixo no pneu que pende do ramo do enorme carvalho.

Sob aquela copa, na modorra de uma tarde de verão, quando até os mosquitos voavam sonolentos, Rita, Ana e Marta selaram uma promessa. Fora no dia seguinte à morte da menina Laurinha costureira. A menina Laurinha costureira não tinha a idade das pessoas que morriam, teria ainda muitos anos por gastar. Então, com a convicção dos seus oito anos, prometeram que iriam morrer as três muito velhinhas, já com a vida toda gasta.

Não sabiam, nessa altura, como são efémeras as palavras que se dizem com os joelhos esfolados e os vestidos a encurtar no fim da estação.

O pneu ressequido perdeu protagonismo nas brincadeiras e os livros e diários conquistaram o lugar na sombra. Fumaram o primeiro cigarro, roubado por Rita, a temerária, à gaveta da cozinha da avó. “Os cigarros fazem mal” avisou Ana, a sensata, mas entre tosse e gargalhadas, também experimentou.

Com as costas apoiadas no tronco, Marta, a eloquente, vaticinou. Ana, a sensível, chorou. Rita, a magnânima, perdoou. E o velho carvalho, com os ramos pesados de tanto sentimento ao dependuro, largou folhas no chão e desabrochou para elas, ano após ano.

Nas caras das meninas desenharam-se linhas e nas vidas escreveram-se histórias.

Sentadas nos degraus, Ana e Marta amparam entre elas o corpo emaciado de Rita, a gastar-se antes do tempo.

Ana, feita audaz, tira do bolso o maço amarrotado que encontrou na gaveta da cozinha. Acende um cigarro e estende-o a Marta, outrora estoica. Rita interceta-o e, com a mão a tremer, leva-o aos lábios. Veem o fumo dissipar-se como as promessas da infância, tão verdadeiras quanto inconsequentes.

Defronte, o carvalho permanece. E elas recordam a menina Laurinha costureira.

 

 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordin...

As meninas vão para a escola

  A natureza prossegue, indiferente. Todos os anos, quando começa setembro, daquela terra adormecida e inóspita, um caule verde, comprido, fura o seu caminho que culmina numa flor de campânula cor-de-rosa. Ensinaram-nos, na ilha Terceira, depois de cavarmos com as mãos os bolbos, à beira da estrada, que se chamam "meninas-vão-para-a-escola" por florirem sempre nesta altura do ano. Passaram 22 anos desde que ouvimos essa história. No dia 1 de setembro de 2004, quando foi cercada a escola de Beslan, na Rússia, que resultou na morte de mais de 330 pessoas, entre as quais 186 crianças que regressavam à escola, o vaso também floriu. Nesse ano, passou a ter por companhia um anjo branco a lembrar os meninos que em mais nenhum setembro voltariam à escola. Este ano, em todo o mundo, o regresso à escola é diferente. As meninas-vão-para-a-escola e os meninos também, porque tem de ser. Para bem deles, dos pais, dos professores, da economia. Com mais receios ou menos, com a angústia mai...

Virada do avesso

  Às vezes o dia vira-me do avesso. Ou as pessoas. Ou o tempo. Às vezes é porque está sol e vento. Ou chuva e frio. Ou porque anoitece demasiado cedo. Ou porque as horas não me chegam. Ou porque o tempo não passa. Fico indecisa se me apetece gritar ou afundar-me no sofá debaixo de um cobertor. Tenho uma vontade imensa de comer porcarias. Não como para não me irritar ainda mais com a balança. Bebo café demais. Fico elétrica para vencer a letargia. Quero praia, mas seria incapaz de tirar a roupa para mergulhar. Tudo me irrita. Sei que fico difícil de aturar. Como quando tenho sono ou fome. Sei que quando estou assim, acaba por levar quem não tem culpa. E, por esse motivo, os anos ensinaram-me a tentar ficar calada. Teclo respostas azedas a e-mails estúpidos. Apago e rescrevo, com secura diplomática. Ignoro mensagens e chamadas. Se não querem uma resposta torta, não falem comigo. Desculpem lá, mas “jogo de cintura” não faz o meu género. Nem gente com a mania de que é don...