É muito
cedo. Os candeeiros da rua ainda estão acesos e o edifício está quase vazio.
Apenas um agente, sentado à secretária, ouve a mulher à sua frente, com uma
expressão condescendente. Faz rabiscos no bloco quadriculado, enquanto a
pressão nas têmporas lhe recorda os excessos da noite anterior. A mulher tem
uma equimose abaixo do olho esquerdo e um corte no lábio. A voz é fatigada,
vazia de emoções. Apenas o brilho nos olhos de gato, que mudam de tom enquanto ela
fala, mostram resquícios de uma força antiga.
Na noite
anterior, quando no telejornal vira a mulher que apareceu morta na praia,
Helena tomou uma decisão. De manhã pensou ligar a Laura e pedir-lhe que a
acompanhasse à esquadra, como fizera há alguns anos, mas foi impedida pela
vergonha. Retirara a queixa, nessa altura, e deixara de responder às chamadas
preocupadas de Laura. Há de ligar-lhe mais tarde, dizer-lhe que desta vez será
mais forte.
O agente
(Victor Alves, é como se chama) parece distraído e Helena não tem a certeza se
ele está a anotar os factos com precisão. Olha-a com sobranceria, deixando-a
nervosa. Pressente que não devia ter vindo sozinha.
Começa a
ficar confusa. Quer organizar os pensamentos e transmiti-los de forma clara,
mas o olhar enfastiado do agente Alves intimida-a. Tem a certeza que ele a
despreza.
Victor
integrara a divisão de investigação criminal da polícia de segurança pública, convicto
que faria carreira defendendo as donzelas que o mundo maltratava. Trazia no coração
o ardor da juventude.
A inércia do
sistema e a burocracia foram-lhe apagando as ilusões. O whisky apaziguou-lhe a
ousadia. Aos seus olhos, as delicadas donzelas foram surgindo como aquilo que
eram de facto eram: mulheres amarrotadas pela vida.
Com crescente
rancor, começou a abominar o descuido delas, as nódoas nas camisolas, os cabelos
oleosos, a sombra do buço por tirar. Numa completa inversão de valores, passou
a detestá-las, às mulheres, e aos seus testemunhos patéticos. Odiou a sua submissão,
a fraqueza com que consentiam abusos e maus tratos. Culpou-as pelo fracasso da
carreira, que imaginara auspiciosa, e identificou-se com os homens que as
maltratavam.
Helena não
consegue prosseguir. Empurrando a cadeira para trás, levanta-se e balbucia uma
desculpa enquanto sai atabalhoadamente, em direção ao elevador.
A porta está
a fechar-se quando uma mão a trava. Helena vê, inquieta, o agente Alves a
entrar. O olhar dele é agora arguto, fixo nela. Instintivamente, ela recua para
o canto, sentindo as pernas fraquejarem. O agente aproxima-se e ela consegue
cheirar o whisky no hálito morno. Fica enjoada. Ele pousa-lhe a mão no ombro e
deixa-a deslizar até ao seio. Comprime-lhe o corpo contra a parede do elevador,
com a força do seu.
- Se vocês
não fossem umas gajas tão reles – diz, cuspindo as palavras.
Nesse
instante, o elevador dá um solavanco e toca a campainha de paragem. Ele
vira-lhe as costas e sai, assim que as portas abrem.
Helena
colapsa. Escorrega até ao chão, onde fica sentada na poça da sua própria urina.
Quando a
encontrarem, minutos mais tarde, não vai contar o que se passou.
Nem vai
telefonar à Laura.
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