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Sustos

 


 

O que é um susto? O que é que me assusta?

Na sequência de uma conversa a propósito de filmes de terror, dei por mim a meditar sobre o assunto.


Susto

Medo profundo e repentinosobressalto. 

Medo 

Estado emocional resultante da consciência de perigo ou de ameaça,

 reaishipotéticos ou imaginários. = FOBIAPAVORTERROR

in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Portanto, susto, é aquele medo que nos toma de assalto. Corta a respiração, faz soltar um grito involuntário, levar a mão à boca, fechar os olhos. Eu gosto muito de filmes de terror. E de sustos. Não me fazem dormir mal, nem me causam receios quando me levanto a meio da noite e está tudo escuro. Depois daquele choque de adrenalina, compensado com açúcar das pipocas, acendo a luz da sala, e esta tudo bem. O paranormal não me causa desassossego, não sei se por puro ceticismo, se por uma ligeira psicopatia.

Os meus desassossegos são outros. Muito mais palpáveis, muito mais mundanos, mas, não menos irracionais. Tenho pavor de caixões fechados, de elevadores parados entre andares, de câmaras frigorificas.  A água a inundar os pulmões. A câmaras de gás. Tiram-me o sono as asfixias e os afogamentos.

Tenho horror a vidros de automóvel cegados por chuvas torrenciais. Incomoda-me todo o tipo de tortura física, ao ponto de ter de fechar os olhos e tapar os ouvidos em determinadas cenas, ou passar à frente trechos de livros. Não suporto assistir a crueldade para com animais.

De O silêncio dos inocentes, por exemplo, guardo na memória, a descrição das ovelhas no matadouro. Já o Hannibal a comer cérebros, não me perturba. Do Kill Bill retenho, consolada, a possibilidade da fuga de um caixão. Palhaços assassinos não me incomodam. Nem a loucura de Jack Nicholson em Shinning. Ou as lâminas diabólicas de Freddy Krueger. Contudo, ainda me apoquenta o culminar do Para onde vão os Guarda-chuvas, de Afonso Cruz. E os empalados a morrer lentamente na subida para o castelo do Drácula, de Bram Stoker. E a horrorosa cena final do Brave Heart.

A linha que nos separa do racional para mergulhar no pânico é dificílima de explicar. Os sinais de alerta que o cérebro envia, variam de pessoa para pessoa. Cada um tem as suas limitações, os seus receios, os seus gatilhos que disparam nas mais diversas situações. O medo é uma perceção individual.

Mas, ao passo que o susto é repentino, como um sobressalto, e passa, o medo pode deixar-nos tolhidos a um canto, frágeis e incapazes de reagir. Petrificados.

O susto pode ser catártico. Gritamos, libertamos adrenalina, sentimos alívio.

O medo paralisa. Persiste, se deixarmos. Cresce, se alimentado.

É também o medo que, tantas vezes, nos impulsiona. Que nos move em busca de segurança, que nos protege e que nos leva a proteger o que amamos.

O medo nosso. Cabe-nos decidir o que fazer com ele.


Fotos de @the.tiagolourenco

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