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Crónica de uma violência anunciada - 3


 

A casa está silenciosa. No telemóvel, pisca a luz de nova mensagem. Sem abrir, Laura vê as primeiras palavras: “ainda estou atrasado…”. 

De novo, sente invadi-la uma sensação que se assemelha a um cansaço muito profundo. Decidida a sucumbir-lhe, prepara um banho de imersão. Vê o fio de gel escorrer para o fundo da banheira, e deixa acumular-se uma quantidade maior que o necessário. Abre a torneira deixando a espuma formar-se, enquanto acende velas e põe a tocar o programa radiofónico da noite. Acha reconfortante a voz profunda do locutor. Sente-se menos sozinha.

Despe-se devagar, admirando os contornos do corpo à luz tremeluzente das velas. Ocorre-lhe que é um desperdício e zanga-se. Ela é um desperdício, pensa. O seu corpo, que o marido não venera, é um desperdício. Queria outro olhar de admiração para além do seu. Percebe que anseia pela validação masculina e zanga-se ainda mais.

Ao entrar na banheira, porém, deleita-se com o contraste entre a água quente e a espuma fria e deixa as angústias diluírem-se.

Era usual, outrora, terminar assim os dias. Agora, justifica-se com falta de tempo, para não admitir que é o juízo de Eduardo que a refreia. Ele zomba dos cremes dela, do tempo que passa a cuidar a pele, o cabelo. E ela, humilhada, acelera as rotinas para não lhe alimentar o escárnio.

Pensa no contorcionismo que tem praticado, ao longo dos anos, para caber no molde que ele idealizou. Tem dificuldade em distinguir as escolhas que são, verdadeiramente, suas e as que são sugestionadas por ele. Aflora-lhe a ideia de que é uma marioneta e sente uma enorme compaixão por si própria.

Quer relaxar novamente, mas o novelo de pensamentos enrola-se-lhe na mente, sucedendo-se em imagens demasiado nítidas. A mulher estendida na areia, Helena quebrada nos seus braços, misturam-se com Eduardo a franzir o cenho ao seu vestido preto. “Vais sair assim?”, “dê-me a receita, tenho pressa”, “o que é que eu fiz errado?”, “ele ama-me, só que…”.

Sente na pele dores que talvez não sejam suas e deixa-as embrenharem-se como se fossem. Ouve palavras ásperas, galanteios inapropriados, sente toques que de acidentais nada tiveram, violências. Não sabe onde acaba o seu sofrimento e começa o delas.

Vê-se frágil, submersa na água tépida, e tem medo.

Recorda a mulher da praia, recorda Helena, recorda-se de si própria. Como eram, todas elas, antes de se moldarem às vontades dos seus companheiros? Que linha a separa de cair no desespero delas?

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