Avançar para o conteúdo principal

Hold me on pause


 

Tudo preparado. As almofadas aconchegadas, a manta dobrada ao lado, a garrafa de vinho aberta. E um copo, só. Chocolates com recheio de caramelo, o sabor que inventei para a tua língua.

A imagem está em pause: minuto 00:00.

- Estás pronta?

- Sim.

Play. Saltamos o genérico. Generalidades não nos seduzem.

Encho o copo.

Os minutos passam pelo ecrã. Aumento o volume, a expectativa cresce, abafo um grito. Não ouves, mas sei que adivinhas. Sei que sorris.

Engulo em seco. Levo o copo aos lábios. O anseio aquece-me o ventre. Aperto o comando.

- Para. Fiz rewind sem querer, já não sei onde estou.

- Eu espero.

Disfarças mal a impaciência, eu pressinto. Tens pressa? Omito a pergunta.

Fui eu que escolhi o filme. Disse-te porquê? Julgo que não. Temos por costume evitar lugares-comuns.

- Cheguei.

Prosseguimos em slow motion, o caramelo derrete-me nos dentes e fecho os olhos por instantes. Terei de mentir depois. Fingir que não perdi nada. E preciso de mais vinho. Ponho pause, sem te dizer. Perco-te por uns segundos. Mais tarde, com um skip, encontro-te. Por enquanto, divide-nos, também, o tempo. Temos a dislexia temporal das paixões indevidas e a decência de não coexistirmos.  

Na minha cabeça, outro filme, inventado pela abstinência. Se imaginasses as palavras que digo na tua boca. Poupo-te a imensas tragédias. A alguma luxuria, também, é verdade. Mas que culpa tenho eu, se tens sempre o dedo no exit?

O telemóvel vibra e eu arrelio-me. Devia ter-te silenciado, não gosto de interrupções.

- Estou cansado. Podemos continuar noutro dia?

Dizia eu, não gosto de interrupções.

- Pode ser.

Mas o filme continua. Cansei-me de esperar por ti. Brinco com a renda azul das cuecas. Havias de gostar, se viesses.

Lamentas? Faz fast forward, se quiseres, e ainda me apanhas.

 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordin...

Desculpa-me

  Pedes desculpa, mais uma vez. A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar. Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a miúda, rabugenta, pelo pulso. Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou. Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o ranho à blusa. - Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena, duvida. Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados. Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca da camisola. O recado da educadora flutua através de mim. Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café. Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na cintura. Cheiras a dia lavado. - Vai ser diferente, agora. Quero c...

Virada do avesso

  Às vezes o dia vira-me do avesso. Ou as pessoas. Ou o tempo. Às vezes é porque está sol e vento. Ou chuva e frio. Ou porque anoitece demasiado cedo. Ou porque as horas não me chegam. Ou porque o tempo não passa. Fico indecisa se me apetece gritar ou afundar-me no sofá debaixo de um cobertor. Tenho uma vontade imensa de comer porcarias. Não como para não me irritar ainda mais com a balança. Bebo café demais. Fico elétrica para vencer a letargia. Quero praia, mas seria incapaz de tirar a roupa para mergulhar. Tudo me irrita. Sei que fico difícil de aturar. Como quando tenho sono ou fome. Sei que quando estou assim, acaba por levar quem não tem culpa. E, por esse motivo, os anos ensinaram-me a tentar ficar calada. Teclo respostas azedas a e-mails estúpidos. Apago e rescrevo, com secura diplomática. Ignoro mensagens e chamadas. Se não querem uma resposta torta, não falem comigo. Desculpem lá, mas “jogo de cintura” não faz o meu género. Nem gente com a mania de que é don...