Estão sentados, frente a frente,
numa mesa junto à janela. Lá fora, cintilam gotas de chuva e luzes de Natal
que, repara ela, chegam cedo demais. Leva o copo aos lábios, as pestanas a
encerrar emoções. Esconde o desconcerto. Ele prossegue, ignorante. “Precisamos
de uma barriga de aluguer”, diz, sem perceber como a voz cava embate nela. “Não
há ninguém melhor que tu”, continua, e as palavras chocam na transparência
dela, na lâmina que a envolve sem ele ver. Foram anos a prometer-lhe paixões
impossíveis e ele, perdido noutros encantos, amando noutros lugares. Voltando,
de tempo e tempo, à bolha de vidro dela. E ela acolhendo-o nos regressos,
deixando-o escorregar-lhe na pele fria.
Quando lhe apresentou o Miguel,
ela soube. “Desta vez é a sério”, disse-lhe ele, sem a ver tornar-se opaca. E,
diante da cegueira dele, sem redenção para os pecados que não conheceu, ela
enterrou o amor num abismo fundo. Ele, olhos fraternos, para lá da redoma das
paixões, a amá-la sem imaginar como isso a fissurava.
Dos cacos, ela ergueu-se para o
entregar ao homem que ele escolheu, sorrindo, com o batom esborratado nos
dentes. E, sem ele saber, desejou-o com mais poros, com mais fluidos, com mais
unhas que tivesse para lhe cravar.
Ele percebe que ela está longe,
mas falha em encontrá-la. Julga que a conhece bem e não conhece nada para além
das transparências que ela lhe dá. “Eu sei que é um convite bizarro”, diz, “mas
só faz sentido se fores tu. Diz que sim”.
Ela volta a ele, confusa nos seus
equívocos, com as lágrimas cristalizadas atrás da retina.
Pega-lhe na mão, refém dos
sentidos dele. “Claro que sim, meu amor.”
Tem na pele luzes apagadas. E há
luzes de Natal nos olhos dele.
foto de @the.tiagolourenco
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