Avançar para o conteúdo principal

Redenção


Estão sentados, frente a frente, numa mesa junto à janela. Lá fora, cintilam gotas de chuva e luzes de Natal que, repara ela, chegam cedo demais. Leva o copo aos lábios, as pestanas a encerrar emoções. Esconde o desconcerto. Ele prossegue, ignorante. “Precisamos de uma barriga de aluguer”, diz, sem perceber como a voz cava embate nela. “Não há ninguém melhor que tu”, continua, e as palavras chocam na transparência dela, na lâmina que a envolve sem ele ver. Foram anos a prometer-lhe paixões impossíveis e ele, perdido noutros encantos, amando noutros lugares. Voltando, de tempo e tempo, à bolha de vidro dela. E ela acolhendo-o nos regressos, deixando-o escorregar-lhe na pele fria.

Quando lhe apresentou o Miguel, ela soube. “Desta vez é a sério”, disse-lhe ele, sem a ver tornar-se opaca. E, diante da cegueira dele, sem redenção para os pecados que não conheceu, ela enterrou o amor num abismo fundo. Ele, olhos fraternos, para lá da redoma das paixões, a amá-la sem imaginar como isso a fissurava.

Dos cacos, ela ergueu-se para o entregar ao homem que ele escolheu, sorrindo, com o batom esborratado nos dentes. E, sem ele saber, desejou-o com mais poros, com mais fluidos, com mais unhas que tivesse para lhe cravar. 

Ele percebe que ela está longe, mas falha em encontrá-la. Julga que a conhece bem e não conhece nada para além das transparências que ela lhe dá. “Eu sei que é um convite bizarro”, diz, “mas só faz sentido se fores tu. Diz que sim”.

Ela volta a ele, confusa nos seus equívocos, com as lágrimas cristalizadas atrás da retina.

Pega-lhe na mão, refém dos sentidos dele. “Claro que sim, meu amor.”

Tem na pele luzes apagadas. E há luzes de Natal nos olhos dele.

foto de @the.tiagolourenco

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Mudanças

  Vais ter de mudar de casa, lamento, já não cabes aqui. Empacotei as tuas coisas. Quero que saias já. Fiz a partilha sozinha porque a casa é minha. Levas as noites quentes, o meu sorriso e a televisão. Ah, e levas também os orgasmos. Metade eram falsos. Com as madrugadas fico eu. São as horas em que escrevo melhor. Também guardo o cobertor e o gato. Não precisas de confortos. A culpa, deitei fora. Não tapava nem frinchas. Pelo meio das arrumações, encontrei um bilhete, pingado de café, “compra-me tampões. SEM APLICADOR!”, com um coração no canto, a piscar o olho. Rio-me. Sobra de nós uma hemorragia inútil. Abro uma garrafa de tinto e sento-me, no chão da cozinha, a brindar aos infortúnios. Tens à porta a mala e dois caixotes. Levas o bengaleiro, detesto os casacos pendurados na entrada. E os amigos, com quais ficas? Que sejam eles a escolher. Por mim, dois ou três bastam. Não toques à campainha. Vê lá se, ao menos desta vez, trazes a chave contigo. Deitei a tua escova de

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordinário

Manifesto

  Esta noite tive um sonho demasiado lucido. Se acreditasse em fenómenos paranormais, diria que viajei num universo paralelo. A sala era luminosa. As pessoas recostavam-se, dispostas em hemiciclo. O orador falava, embalando a assistência. - O coração é um músculo cuja função é bombear sangue e provocar mortes súbitas. Para uma morte tardia, não devemos subverter este princípio. As palavras flutuavam, como uma melodia, conduzidas pela brisa morna. - Os indivíduos, ao atribuir ao musculo estímulos para os quais não foi concebido, como amar, sobrecarregam-no e acabam por danificá-lo. O amor tem propriedades corrosivas que provocam lesões irreparáveis nos tecidos do coração e que, transportadas pelo sangue, se espalham às outras partes do corpo. As pessoas ouviam e anuíam, perante aquela explicação cabal para as dores que sentiam. As pestanas carregavam-se de lágrimas. As chagas que os afligiam mais não eram, afinal, que o resultado do uso inadequado do coração. - Como qualqu