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Tu que és valente, que não choras, tu sabes que tens a mania, não sabes?

Eu conheço o arquivo de textos, excertos de livros, fotografias, cenas de filmes, com que escarafunchas cicatrizes antigas até sangrar um bocadinho.

Eu sei desses dias em que a respiração te encrava no diafragma. Sei da playlist que te serve de banda sonora, empanturrando-te de agonias alheias, até não te restarem tons de rosa e não haver tatuagem que te salve. Mesmo se quisesses. E não queres.

Então, lambes a lagrima que te escorre até ao queixo, enquanto ouves em loop a mais triste das músicas tristes. Recusas oportunidades que te resgatem à tristeza. Queres chorar por inteiro, a começar na sola e a acabar no cabelo.

Se rires, culpar-te-ás porque esqueceste. Montas um carrossel entre os ouvidos, movido a melancolia e palavras mal ditas. Ficas zonza. Castigas-te com remorsos antigos e com as falhas que inventaste.

Suspendes o baloiço, com os pés e os sonhos enterrados no chão. Empenhas-te na visita solitária ao fundo do buraco.

Navegas à bolina no mar de pranto. Para uma gaja que não chora, diria que até tens jeito. Não fosse uma incongruência.

Por fim, deitas o cansaço na almofada e a solidão escorre-te pelo cabelo e pelas pontas dos dedos, cravados na espuma. Dormes os medos. Sonhas angústias com os olhos, abertos, pregados à frincha da janela. Inventas uma portada de madeira que te separa da lua. Se tiveres sorte, chove.

Na manhã seguinte, com as certezas lavadas e enxutas, voltas a vestir de cor-de-rosa. Desapegas-te da cova que visitaste. Mentes, sorrindo. Dizes que a dor no estômago é do vinho da véspera.

Assobias. E a música é outra.

Porque, afinal, sempre és valente. Apesar de teres a mania.

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