Avançar para o conteúdo principal

Erros



Ouve-se o crepitar da lareira e a chuva lá fora. Ela está sentada de perna cruzadas, com a manta de xadrez no colo, a cobrir-lhe os medos. Ele está na outra ponta do sofá, rígido.

- Quando é que eu errei? – pergunta ele.
- Não erraste. Só não estavas certo.

Ele fica em silêncio. Remói a resposta. Ouvem-se-lhe os pensamentos pelo meio das gotas de chuva. Ela observa os desenhos da água a escorrer nos vidros e pensa que se parecem com as palavras que ele não diz, a escorrerem-lhe pela pele.

Os olhos dele estão presos numa ideia distante, que ela pressente, mas não vê. Finalmente estremece, como a chegar de um sonho. Afaga o queixo com o polegar e o indicador, entreabre os lábios, ensaia um som. Procura o timbre certo.

- Pensei amar-te – murmura - Mas depois pensei melhor.

Tem chuva na voz. Ela encolhe-se, açoitada. Quer retaliar, ser cruel. Quer que ele saiba como dói quando lhe chove por dentro. Levanta-se. Deixa cair ao chão a manta que enrola os medos. De costas, estende as mãos esguias ao calor da lareira. Concentra-se no tremor que lhe sobe pelas pontas dos dedos. Recolhe o frio. Quando se volta, sorri.

- Eu sei que pensaste. Sei das horas sem sonhos, quando a chuva era gentil e a noite valia todas as tempestades. Sei do tempo que parava, quando de nós te sobrava apenas uma ilusão. E uma ilusão de amor é um amor que dura para sempre. Sei de todos os desejos que mentiste. Só por isso te perdoo. Também eu seria capaz de te amar, se quisesse. E quis. E também eu pensei melhor.

Ela cala-se e encara-o, por fim. Os olhos dele são dois dilúvios a chover por dentro. Quer amá-lo. Viver por ele. Morrer de privação dele. 
Num momento fugaz, ele rende-se. Quer dizer-lhe o que ela sabe. Quer merecer a raiva dela. Mas, quando fala, já se reencontrou.

- Quando é que eu não estive certo?
- Quando pensaste melhor.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Desculpa-me

  Pedes desculpa, mais uma vez. A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar. Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a miúda, rabugenta, pelo pulso. Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou. Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o ranho à blusa. - Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena, duvida. Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados. Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca da camisola. O recado da educadora flutua através de mim. Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café. Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na cintura. Cheiras a dia lavado. - Vai ser diferente, agora. Quero c...

Manifesto

  Esta noite tive um sonho demasiado lucido. Se acreditasse em fenómenos paranormais, diria que viajei num universo paralelo. A sala era luminosa. As pessoas recostavam-se, dispostas em hemiciclo. O orador falava, embalando a assistência. - O coração é um músculo cuja função é bombear sangue e provocar mortes súbitas. Para uma morte tardia, não devemos subverter este princípio. As palavras flutuavam, como uma melodia, conduzidas pela brisa morna. - Os indivíduos, ao atribuir ao musculo estímulos para os quais não foi concebido, como amar, sobrecarregam-no e acabam por danificá-lo. O amor tem propriedades corrosivas que provocam lesões irreparáveis nos tecidos do coração e que, transportadas pelo sangue, se espalham às outras partes do corpo. As pessoas ouviam e anuíam, perante aquela explicação cabal para as dores que sentiam. As pestanas carregavam-se de lágrimas. As chagas que os afligiam mais não eram, afinal, que o resultado do uso inadequado do coração. - Como qu...

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordin...