Já não o via há mais de
uma década quando empurrou o portão, mas era com o mesmo passo lesto que Clara cruzava
a entrada. Com a cabeça deitada na erva e a cauda estendida, não se levantou ao
sabê-la chegar. Era como se ali a tivesse esperado todas as tardes desses anos
e a confirmação do regresso dispensasse alaridos. Um movimento subtil da orelha
traiu a dissimulação.
Clara aproximou-se de
mansinho, ajoelhou-se e pousou-lhe a mão no lombo. O enorme pastor alemão
ergueu-se de um salto e derrubou-a, lambeu-lhe o queixo, o nariz. e soltou gargalhadas
canídeas semelhantes a latidos. Ela, abraçando-o, afundou-lhe a cara e as
lágrimas no pelo farto do pescoço.
Pararam, ofegantes. De
pernas cruzadas, afagando as orelhas do cão, ela dilatava as narinas, sorvendo
recordações. Guiava as saudades pelos cheiros do mosto, das maçãs maduras, da
panela de marmelada e do cachimbo do avô. A infância era feita de cheiros. A
segurança cheirava a cachimbo e pelo de cão. A felicidade cheirava a feno. O
medo cheirava a desinfetante. As gargalhadas cheiravam a tangerina. E família
cheirava a rabanadas e vinho quente. A dor não tinha cheiro e era isso que mais
a assustava.
– Eu quis vir antes. – Sussurrou
– Pensei que tinha tempo.
Mas mentia. Um animal não
entende as palavras, mas percebe o desacerto na voz. Abandonara a quinta
zangada, numa tarde nefasta, e demorara a mágoa pelos anos. Esquecera-se que o
amor cheirava a lavanda, aventais engomados e a fios de prata no cabelo.
Com pesar, ergueu os olhos
para o alpendre. Olhava-a um rosto com rugas marcadas a cinzel, carrapito de
prata, boca contraída pelos silêncios. Uma lágrima recolhida na sombra dos
olhos.
- Olá Clara – disse numa
voz inodora. E o rosto de menina
envelheceu toda a década de uma vez.
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