Avançar para o conteúdo principal

Escrever Escrever

Foi há um mês que retomei aqui a escrita. é estranha a percepção que temos agora do tempo, nestes dias que pouco se destingem uns dos outros.
Nos meus dias tem havido muito pouco tempo de ócio e posso afirmar que há meses que não via tão pouca televisão como agora. Acho que o medo de me acostumar a ficar parada me impele a estar constantemente a descobrir coisas para fazer. Já fiz várias daquela lista de quarentena: já arrumei as t-shirts por cor, organizei e limpei armários, arranjei todos os vasos da varanda, cortei o cabelo ao marido, fiz puzzles, bebi demais, comecei a correr - ainda não fiz pão nem cortei o cabelo a mim própria e acho que vou passar essas, por enquanto. Também me inscrevi num curso online. Foi um curso de Escrita Criativa e, com muita pena minha, terminou ontem e hoje enviei o texto final.
Lema: Escrever primeiro, pensar depois. 
Dar oportunidade ao pensamento para fluir e passar da cabeça para o papel. Frases soltas, pedaços de conversa, sensações, dúvidas e medos, metáforas e comparações, tudo é pretexto para escrever. Há que vencer o pânico da página em branco, entrar na casa da criatividade e fazer das palavras brinquedos, como peças de lego espalhadas pelo chão, para nos proporcionar o prazer da experiência. 
Para mim escrever é isso; libertar-me de regras e amarras, arriscar, mergulhar no vazio, sem a pressão do certo ou errado, disposta a espalhar-me ao comprido.
Eu sou perfecionista e tenho uma necessidade imensa de controlar o que me rodeia, para não me sentir insegura. Escrever permite-me virar costas a tudo isso. Ser mais livre. Ser mais eu.
Durante estas horas de troca de textos e experiências, nós, pessoas que não se conhecem e protegidas pela segurança da distância física, dissemos (escrevemos e lemos) o que quisemos, o que sentimos e o que inventámos sentir. Foram partilhas intensas, bonitas, divertidas e pessoais, livres das grilhetas que a sociedade, os princípios e os costumes tantas vezes nos impõem. 
Foi muito bom.

Auto-retrato
(exercício)
Onde se lê conforto deve ler-se sofá com manta e gato;
Onde se lê gulodice deve ler-se croissants mornos;
Onde se lê sonho deve ler-se sem limites;
Onde se lê escrita deve ler-se sentimentos e sentidos;
Onde se lê brinde deve ler-se amigos e vinho tinto;
Onde se  lê amizade deve ler-se partilha;
Onde se lê desconhecido deve ler-se tentação;
Onde se lê amor deve ler-se um sorriso e duas lágrimas;
Onde se lê eu deve ler-se nas entrelinhas.

Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Mudanças

  Vais ter de mudar de casa, lamento, já não cabes aqui. Empacotei as tuas coisas. Quero que saias já. Fiz a partilha sozinha porque a casa é minha. Levas as noites quentes, o meu sorriso e a televisão. Ah, e levas também os orgasmos. Metade eram falsos. Com as madrugadas fico eu. São as horas em que escrevo melhor. Também guardo o cobertor e o gato. Não precisas de confortos. A culpa, deitei fora. Não tapava nem frinchas. Pelo meio das arrumações, encontrei um bilhete, pingado de café, “compra-me tampões. SEM APLICADOR!”, com um coração no canto, a piscar o olho. Rio-me. Sobra de nós uma hemorragia inútil. Abro uma garrafa de tinto e sento-me, no chão da cozinha, a brindar aos infortúnios. Tens à porta a mala e dois caixotes. Levas o bengaleiro, detesto os casacos pendurados na entrada. E os amigos, com quais ficas? Que sejam eles a escolher. Por mim, dois ou três bastam. Não toques à campainha. Vê lá se, ao menos desta vez, trazes a chave contigo. Deitei a tua escova de

Desculpa-me

  Pedes desculpa, mais uma vez. A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar. Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a miúda, rabugenta, pelo pulso. Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou. Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o ranho à blusa. - Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena, duvida. Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados. Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca da camisola. O recado da educadora flutua através de mim. Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café. Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na cintura. Cheiras a dia lavado. - Vai ser diferente, agora. Quero crer-

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordinário