Avançar para o conteúdo principal

Desconfinamentos


Andamos às apalpadelas, um dia de cada vez e em cada dia, um dia novo. Não sabemos como será amanhã, quanto mais o fim do mês. Abrimos o peito, a mente, o olhar, às expectativas que criamos e que ora nos elevam ora nos fazem cair aos trambolhões. E no meio dessas utopias em que quase acreditamos, começamos a baralhar um pouco o que é afinal verdade, se é que importa.

Um dia acordamos e decidimos “hoje vai ser assim” e ainda o café do meio da manhã está a arrefecer na chávena, já o dia nos levou por outras voltas e nós, resignados, lá vamos, assim como quem se faz difícil mas no fundo agradece porque é muito mais fácil deixar-se ir.

Num caminhar em que vamos trocando o passo, pomos o pé em ramo verde desejando ardentemente não tropeçar, ou sim, quem sabe. Às vezes avançamos aos caídos, noutras levantamos a cabeça, olhos postos no horizonte e largamos a correr até as pernas se cansarem. Ou cansarem-nos as distâncias tantas vezes repetidas.

E mais a cabeça que insiste em procurar explicações, em antecipar cenários e tentar fazer-se precavida quando esta vida, ao fim e ao cabo, já de há uns tempos para cá, deixou de se deixar prever.
Perdemo-nos em conjeturas e, afinal de contas, talvez pensar pouco seja o segredo de quem quer chegar a alguma conclusão. É que isto de debatermos interior e exaustivamente certos assuntos, esgota-nos mais a nós do que esgotaria alguma vez as possibilidades que esses certos, de tão incertos, encerram. Tudo isto é complicado só por si, para quê juntar mais obstinadas preocupações? Refletindo sobre o tópico, seria de bom  tom concluirmos que não temos conclusão nenhuma. Se nem os eruditos e entendidos na matéria...

Vamos indo por aí, com cautelas, experimentando novos caminhos. Tudo aqui é novidade, de nada serve exasperarmo-nos na tentativa vã de controlar o que nos foge. A algum sítio chegaremos, mais mossa menos mossa. Melhor será ter cuidado, diz a história que a prudência se faz boa conselheira. Podendo-se, evitem-se atalhos, que foi assim que na história o lobo enganou a menina.

Se desejos os há de sair porta fora, desejos a que decerto não nos daríamos com tanta premência se fossem outras as circunstâncias, mais vale sermos ponderados, pois que « num repente, um passo em falso pode deitar tudo a perder.

Cada dia é um dia novo, já sabemos, e não nos vai servindo de muito ter ganas de o planear. Outros tempos houve em que tanto virtuosismo se dava à antecipação. Agora não, que o futuro resolveu mostrar-nos aquilo que realmente é (que até já era, salvo a nossa presunção): incerto. 

De pouco nos serve a  nossa ânsia de enganar dias compridos e tentar endireitar curvas de caminhos que parecem andar em círculo.
Caminhemos pois, às apalpadelas. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordin...

As meninas vão para a escola

  A natureza prossegue, indiferente. Todos os anos, quando começa setembro, daquela terra adormecida e inóspita, um caule verde, comprido, fura o seu caminho que culmina numa flor de campânula cor-de-rosa. Ensinaram-nos, na ilha Terceira, depois de cavarmos com as mãos os bolbos, à beira da estrada, que se chamam "meninas-vão-para-a-escola" por florirem sempre nesta altura do ano. Passaram 22 anos desde que ouvimos essa história. No dia 1 de setembro de 2004, quando foi cercada a escola de Beslan, na Rússia, que resultou na morte de mais de 330 pessoas, entre as quais 186 crianças que regressavam à escola, o vaso também floriu. Nesse ano, passou a ter por companhia um anjo branco a lembrar os meninos que em mais nenhum setembro voltariam à escola. Este ano, em todo o mundo, o regresso à escola é diferente. As meninas-vão-para-a-escola e os meninos também, porque tem de ser. Para bem deles, dos pais, dos professores, da economia. Com mais receios ou menos, com a angústia mai...

Virada do avesso

  Às vezes o dia vira-me do avesso. Ou as pessoas. Ou o tempo. Às vezes é porque está sol e vento. Ou chuva e frio. Ou porque anoitece demasiado cedo. Ou porque as horas não me chegam. Ou porque o tempo não passa. Fico indecisa se me apetece gritar ou afundar-me no sofá debaixo de um cobertor. Tenho uma vontade imensa de comer porcarias. Não como para não me irritar ainda mais com a balança. Bebo café demais. Fico elétrica para vencer a letargia. Quero praia, mas seria incapaz de tirar a roupa para mergulhar. Tudo me irrita. Sei que fico difícil de aturar. Como quando tenho sono ou fome. Sei que quando estou assim, acaba por levar quem não tem culpa. E, por esse motivo, os anos ensinaram-me a tentar ficar calada. Teclo respostas azedas a e-mails estúpidos. Apago e rescrevo, com secura diplomática. Ignoro mensagens e chamadas. Se não querem uma resposta torta, não falem comigo. Desculpem lá, mas “jogo de cintura” não faz o meu género. Nem gente com a mania de que é don...