Num impulso pouco racional e sabendo de antemão que me ia magoar, fui ao Google Earth e procurei a minha
casa. A tal que está a 317km de distância. Cliquei duas vezes no rato e deixei
o zoom mostrar-me a minha rua. Depois mudei para street view e percorri os
passeios, com a visão toldada por uma cortina de lágrimas.
Percorrendo, com os olhos fixos no
monitor, as ruas da minha infância, vejo o vosso carro estacionado à porta de
casa. Se rodar a orientação, vejo a mesa grande de jardim colocada junto à piscina
e a água, estupidamente azul, parece troçar de mim. O meu jardim, aquele onde
fui polícia e ladrão, onde montei tendas, fiz tiro ao alvo, bebi sangria,
grelhei hambúrgueres, brinquei, fui filha, fui irmã, fui prima, fui mãe, está intacto
na imagem, mas sei que na realidade foi despido de toda a alegria despreocupada
que o encheu nos meus tempos de adolescente e de criança. Quando entrar o
portão outra vez vai ser com receio, em cuidados vou fincar os pés no chão com
muita força para conter o impulso de correr a abraçar-vos.
Regressei hoje ao trabalho e sinto-me
incrivelmente sozinha. O bar fechado, os corredores quase desertos, as pessoas
a moverem-se em filas ordeiras, os passos a recuar cada vez que alguém se
aproxima, lembram a toda a hora que estes não são tempos normais e que os
tempos que outrora vivemos, as coisas que dávamos por certas, vão demorar muito
a regressar.
Na rua quase toda a gente anda de cara
tapada e tornou-se muito difícil ver sorrisos. As vozes estão sempre abafadas
por uma camada de pano e as gargalhadas deixaram de estar livres para se ouvir.
Os amigos não se abraçam e o toque passou
a ser um luxo. Talvez cada um de nós tenha o privilégio de poder tocar uma,
duas pessoas, no máximo. Com outros nem podemos quebrar a distância social.
Olho lá para fora através das gotas de
chuva no vidro e há uma barreira quase física, quase sólida, a separar-me da vida
como eu a conhecia.
Mandam-nos regressar, mas o mundo cá fora
não está pronto para nos receber. É um mundo hostil, fechado e cruel, que me
faz doer pela ausência de tudo o que enchia os dias e me era familiar. As ruas
magoam-me, há cantos e sítios a que eu pertencia, ou que também me pertenciam,
e que me atingem como socos no estômago, tal é a distância com que se impõem. As lojas
estão tristes, vazias de gente, com montras demasiado arrumadas.
Eu, que receava e evitava os contactos físicos,
que me debatia se me tentavam agarrar ou aproximar demasiado, sinto agora o corpo
desesperar-se pela ausência do toque, pela ânsia de sentir a pressão de braços
a envolver-me, de vozes a segredar-me ao ouvido, do beijo ruidoso de uma amiga.
Hoje o desamparo apanhou-me. Encheu todo o
espaço que, à minha volta, está vazio de gente. Inspiro e a máscara a colar-se
à cara deixa-me a cabeça ligeiramente tonta. Sinto que não me chega o ar.
Falta-me conseguir respirar fundo. Falta-me tudo. Faltam-me até as novas rotinas
que tinha encontrado nestes longos dias de isolamento e que hoje me foram também
tiradas. Sinto-me perdida e sem norte nesta espécie de redoma em que vivemos
agora.
Mandaram-me regressar, e eu sinto-me
encurralada entre aquilo que já não tenho, aquilo que era o novo dia-a-dia e
que também já não é, e um futuro carregado de incertezas.
Sinto urgência de fugir do mundo, de fugir
de mim, de correr, de gritar, de pedir que me toquem, que me abracem, que me
digam que já passou e que vai ficar tudo bem.
E ao mesmo tempo, se alguém se atrevesse, revoltar-me-ia
numa agitação confusa de gritos, murros e pontapés, porque o que eu hoje quero é sucumbir à fúria e ao desespero. O que eu hoje quero é que me deixem gritar tudo
o que dói.
“Se perguntarem por mim, digam que voei”
Eu também estou a voar esticado no sofà, lendo o blog🍀ao som da música Jazz🌹
ResponderEliminarCada um voa como pode. Importante é não deixar de voar.
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