Este
é todo para ti, meu querido.
Reclamaste,
com toda a razão e propriedade. Esse género de reclamação costuma vir mais dela
do que de ti. Se fosse ela a reclamar eu encolhia os ombros, pode viver 100
anos que não se livra daquela síndrome de filha única que foi durante apenas 3
anos! Ao contrário dela, tu sempre
partilhaste os afetos e a atenção da mãe. Temos de lhe dar um desconto, não é
nada fácil para uma criança habituada a ser a estrela da companhia aprender a
partilhar o palco com um irmão. Eu também passei por isso e também não gostei,
mas depois a gente acostuma-se e passa a gostar do rebento mais novo, a tal
ponto que achamos que é nossa função tomar conta dele, ensiná-lo, vigiá-lo, dar
palpites, fazer de mãe (o que irrita a verdadeira mãe) e mais tarde fazer de
sogra (o que às vezes irrita a cunhada). Mas este post não é sobre mim, nem é
sobre ela. Este é sobre ti.
E já
era tempo.
A
verdade é que estás aqui no quarto ao lado e, tendo em conta que partilhamos a
casa quase 24 horas por dia desde o início do isolamento, não estamos a sofrer
acessos de saudade. Se me apetecer muito ver-te basta dar 5 passos e bater-te à
porta, correndo o risco de ouvir um grunhido pouco simpático porque estou a
interromper alguma coisa. Antes da pandemia também estavas aqui e apesar das
muitas horas que passas e passavas fechado no quarto, estás sempre perto. E
isto não quer dizer que a tua companhia, que a tua presença é menos importante, pelo contrário. Nós, pessoas, é que temos tendência a achar que há
coisas que, de tão óbvias, não é preciso dizê-las, e é. Portanto, hoje digo o que
já devia ter dito há muito mais tempo: ainda bem que estás aqui meu piolho. Ainda
bem que te sentas comigo à mesa, todos os dias, para almoçar e jantar. Ainda
bem que me contas (exaustivamente) tudo o que se passa com as aulas, os
trabalhos, as pesquisas, que me contas das crises e namoros dos amigos, do cão
que fugiu, da namorada que tem febre. Ainda bem que percebeste que somos uma
equipa e estamos o três no mesmo barco e que para isto ser menos penoso, temos
que remar para o mesmo lado. Se não te tivesse aqui, todos os dias, se não te
tivesse para me apertares a mão nos momentos tristes, se não tivesse o teu
abraço e o teu almoço no dia da mãe, se não te tivesse na cozinha ou atrás da porta
fechada do quarto, todo este tempo seria muito mais solitário, muito mais
vazio e muito mais penoso.
Mas há
outras saudades que eu às vezes sinto. Do tempo em que a tua amora era eu, em
que não havia menina mais bonita e em que conseguia encher a tua vida de
diversão. Aqueles tempos em que fazíamos pasta de papel, pintávamos quadros,
aprendíamos aguarela, víamos o Batatoon e dançávamos a Mila no carro a caminho
da escola. Aqueles tempos em que te doía sempre a barriga ao domingo e eu
levava-te um chá de tília que tu não gostavas, mas bebias porque a mãe garantia
que te faria dormir bem. Aqueles tempos em que ainda acreditavas que a mãe
sabia tudo e tinha sempre coisas para te ensinar. Menos sobre a vida dos
animais, aí bateste-me sempre aos pontos.
Não
és fácil. Nunca foste. Começaste por ser um bebé que não gostava de dormir nem
de leite, e logo aí garantiste as minhas insónias e dores de cabeça. Fizeste algumas
asneiras grandes e outras mais pequenas e tens uma dificuldade imensa em pedir
desculpa. Não é porque não sabes que deves, é porque não sabes como. És tão
casmurro como eu e, também como eu, sofres por meio de silêncios pesados e tens
muita dificuldade em dizer o que te aperta o coração. Choras também como eu,
com lágrimas gordas, amargas e caladas.
Parece
muitas vezes que não dás por nada, mas a verdade é que dás por tudo e às vezes
sais do teu mundo e apertas-me num daqueles abraços que trazem dentro todo o
amor que partilhamos sem alarde. Escreveste-me algumas das coisas mais duras e
tristes que já li e escreveste-me também as mais insólitas e divertidas. Outras
que escreveste foram bonitas e tão tuas. Preocupaste-te comigo numa idade em
que os filhos não têm que se preocupar com as mães e assumiste culpas e castigos
que não eram teus – estas foram as falhas que nunca perdoarei a mim própria. Em
ti revi-me muitas vezes e conheço-te as angústias muito antes de tu dares por
elas. Sei o que não me dizes e sinto cada dor que te atormenta quando dela não
queres falar. Escuto os teus recolhimentos vazios de palavras e quero recolher
para mim o que te estiver a magoar, mas tu não deixas porque, tal como eu, há
muita coisa que tens de resolver sozinho.
Olho para
ti agora, um palmo acima da minha cabeça, cheio de certezas, finalmente com alguma
barba, penso naquele menino de olhos grandes, abertos para ver o mundo inteiro,
com uma curiosidade infinita, e vejo que não me enganei. Eu sabia que tu ias ser o eterno curioso,
sempre à procura, sempre a querer mais, sempre com vontade de outros sítios, de
outras gentes, de outros desafios. Olho para ti e desejo com todo o coração que
persigas todos os sonhos, que nunca te conformes, que não deixes que te moldem numa
forma que não te serve. Olho para ti e quero acreditar que irás a todas as
viagens, que testarás todas as teorias, que viverás grandes experiências. E que
no fim de cada uma, regressarás para me contar.
Por enquanto, feliz e com uma
pontinha de egoísmo, tenho-te aqui, no quarto ao lado.
Difícil de definir
Teu olhar iluminado
Divertido, embriagado
Pelo prazer de existir
És menino
E és fonte de doçura
Elogio à gargalhada
Livre, solta, bem cantada
E repleta de ternura
Vais crescer
Passarás como monção
Deixarás no ar saudade
Calor e a cumplicidade
De uma tarde de Verão
Serás homem
Serás dono do encanto
Seduzirás corações
Desfolharás emoções
Que olharás sempre com espanto
Serás velho
E terás luz no olhar
Serás amigo do vento
Guardarás no pensamento
Muitas histórias para contar
Meu filho
Tu, tal qual uma miragem
Andarás sempre depressa
Serás sempre uma promessa
Do regresso da viagem
abr.03
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