Avançar para o conteúdo principal

De que falam as saudades?

De que falam quando, sentada, sozinha num quarto, escuto uma música triste? Que palavras se afogam em rios de silêncios feitos de notas musicais?

Há sempre tanto que fica por dizer.

Ou por vergonha, ou por não saber articular, ou para poupar os outros às misérias do meu sofrimento.

E então não falam. As saudades. É mais fácil para mim e não constranjo os demais.

Mas calá-las não quer dizer não as sentir, pois não?


- Sê coerente – digo para o vazio.

Gaja não chora.

Para onde te foram as ganas de independência?

És tão independente como o gato no telhado. Queres percorrer horizontes, mas, quando arrefece, voltas a casa ronronando, à espera da malga cheia e de festas na barriga.

Quem te vê, menina, quem te ouve. Pois não és tu que gostas de solidão? De quartos vazios, de praias desertas? Não és tu que foges a abraços prolongados, que disfarças para fugir a um beijo?

 

Mas também és tu que saltas da cama meia hora antes do despertador para não a deixares sair sem levar no cabelo um afago teu. E és tu que fazes uma piada à porta, enquanto prometes voltar em breve, e apressas a despedida para não deixar a lágrima despontar.

És tu que enches os minutos no automóvel com palavras inúteis, para esconder as que não sabes dizer.

 

Ah, menina, quem te ouve e quem te vê. Toda certezas e valentia, bota a bola na frente, vai à luta, as árvores morrem de pé. Tanto cliché. E para quê? Quem é que julgas que enganas com essas ganas de independência, a passear pelos telhados?

 

Serias um felino, noutra vida, achas tu. E passas pelos dias ondulando a espinha, como se essa ginástica te fizesse fugir entre os pingos da chuva.

Sentas-te ao luar, sem fazer caso do frio, com uma manta pelas costas e largas as solidões nos recortes dos telhados.

As saudades, por mais que eu desafie os horizontes, caminham sempre um passo atrás. Basta que me sente, um instante, que logo elas me alcançam.

Nos recortes dos telhados ao luar, nesses minutos incontáveis entre estrelas, no fumo que se desprende de um cigarro, na mão esquecida a segurar o copo, na beira-mar gelada.


Por esta altura, menina, já sabes que não te largam, por muitos telhados que saltes. Mas quem agora te ouve, menina, quem te vê, sabe que é por elas que não cais.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Desculpa-me

  Pedes desculpa, mais uma vez. A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar. Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a miúda, rabugenta, pelo pulso. Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou. Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o ranho à blusa. - Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena, duvida. Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados. Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca da camisola. O recado da educadora flutua através de mim. Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café. Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na cintura. Cheiras a dia lavado. - Vai ser diferente, agora. Quero c...

Manifesto

  Esta noite tive um sonho demasiado lucido. Se acreditasse em fenómenos paranormais, diria que viajei num universo paralelo. A sala era luminosa. As pessoas recostavam-se, dispostas em hemiciclo. O orador falava, embalando a assistência. - O coração é um músculo cuja função é bombear sangue e provocar mortes súbitas. Para uma morte tardia, não devemos subverter este princípio. As palavras flutuavam, como uma melodia, conduzidas pela brisa morna. - Os indivíduos, ao atribuir ao musculo estímulos para os quais não foi concebido, como amar, sobrecarregam-no e acabam por danificá-lo. O amor tem propriedades corrosivas que provocam lesões irreparáveis nos tecidos do coração e que, transportadas pelo sangue, se espalham às outras partes do corpo. As pessoas ouviam e anuíam, perante aquela explicação cabal para as dores que sentiam. As pestanas carregavam-se de lágrimas. As chagas que os afligiam mais não eram, afinal, que o resultado do uso inadequado do coração. - Como qu...

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordin...